terça-feira, 26 de janeiro de 2010

FORA TODAS AS TROPAS ESTRANGEIRAS DO HAITI - Por: Renato Nucci Jr. (*)


A devastação causada pelo terremoto no Haiti acentuou a ocupação militar de seu território por tropas estrangeiras. Às tropas da Minustah, calculadas em 8 mil militares e sob comando brasileiro, se juntam agora cerca de 10 mil soldados norte-americanos, incluindo 2 mil marines. A desculpa dessa grande presença militar é a de ajudar os sobreviventes do terremoto e auxiliar no esforço de reconstrução do país. Em verdade, mais uma vez o sofrimento do povo haitiano é usado para justificar uma nova intervenção estrangeira.


Em uma situação de tanta dor e sofrimento, onde um povo miserável é vítima de uma catástrofe de proporções gigantescas; onde as imagens difundidas pelos grandes meios de comunicação é a de um país acéfalo no qual parece inexistir o aparelho de Estado, o envio de tropas se justificaria plenamente. O aparente caos natural do Haiti só poderia ser contornado pelo uso constante de uma força militar externa capaz de garantir a segurança e a estabilidade política, fatores imprescindíveis para a reconstrução econômica e social do país.


Ao contrário dessa "verdade" martelada diariamente em nossas cabeças, o fato é que a atual situação do Haiti em grande parte se deve às constantes interferências e intromissões de nações poderosas em seus assuntos domésticos. Os Estados Unidos, com os seus marines à frente, ocuparam e governaram o país de 1915 a 1934. De lá saíram quando o controle da alfândega do país permitiu o pagamento das dívidas que este possuía com o City Bank e, de quebra, conseguiram uma mudança constitucional que passou a permitir a venda de terras e plantações a estrangeiros.


A partir da década de 1990, após a derrubada da ditadura sanguinária de Jean Claude Duvalier, o Baby Doc, que recebeu o apoio dos Estados Unidos, o país se transformou em laboratório para intervenções estrangeiras, principalmente as norte-americanas. O objetivo de todas elas é um só: destruir qualquer capacidade dos haitianos em se autogovernarem. Isso significou executar uma clássica intervenção em seus assuntos internos, como foi o caso da destituição do então presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, o que resultou no envio de uma missão de paz da ONU, a Minustah, em nome da estabilização e segurança do país. Do mesmo modo, tratou-se de impedir que o Estado haitiano possa fazer o que todo Estado faz, executando políticas públicas com os fundos disponíveis, sejam eles internos obtidos com o recolhimento de impostos, sejam de doações ou empréstimos internacionais. Desde 2001, por pressão dos Estados Unidos, os fundos de ajuda internacionais são direcionados prioritariamente para as ações de ONG's que passaram a substituir as obrigações do Estado haitiano. O país não conta com forças armadas e as funções policiais são raquíticas.


Aproveitando-se da acefalia política para a qual contribuíram conscientemente, os Estados Unidos despejaram no Haiti o seu arroz, objeto de fartos subsídios, levando a ruína os pequenos agricultores do país. Em 1982, o governo dos Estados Unidos obrigou o Estado haitiano, sob a ditadura de Baby Doc, a eliminar todos os porcos do país, acusando-os de estarem infectados pela febre africana. Toda essa situação tornou a vida no campo insuportável, levando a um grande êxodo rural cujas conseqüências estão no aumento das favelas e da miséria do país observada na década de 1980, principal razão para a rebelião popular que pôs fim, em 1986, ao regime de terror de Baby Doc. Outra situação da qual tiraram proveito, a partir do êxodo rural, foi a implantação ainda nessa década das maquiladoras, principalmente de roupas esportivas (Nike, Adidas, Reebok), que se aproveitam de uma força de trabalho baratíssima e sem direito a organização sindical.


A presença da Minustah, a partir de 2004, acentuou no Haiti a condição de nação sob permanente estado de intervenção externa. Sob comando operacional dos militares brasileiros, a justificativa para uma nova intervenção estrangeira era a de restabelecer a ordem e reconstruir a infra-estrutura do país. Porém, em quase seis anos de ocupação, os níveis de miséria e pobreza não foram revertidos. Nenhuma escola ou hospital foi construído. Os termos da missão de paz da ONU definem que o orçamento da Minustah só pode ser gasto nas operações destinadas a manter a ordem pública e a segurança interna. Em junho de 2009, as mobilizações populares em apoio a um projeto aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado que reajustava o salário mínimo de 70 para 200 gourdas (1 dólar equivale a 42 gourdas), foram duramente reprimidas pelas tropas da Minustah.


Com papel tão limitado, o governo e as tropas brasileiras, além de usarem a missão no Haiti para assegurar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, também fazem do país, nas palavras de um coronel da Brabatt (Batalhão Brasileiro da Minustah), um laboratório para os militares brasileiros aprenderem a como conter uma possível rebelião nas favelas cariocas. Mas o papel vergonhoso do Brasil não se resume em transformar o Haiti e seu povo em um grande campo de treinamento para oprimir o próprio povo brasileiro. Interesses econômicos de capitalistas tupiniquins estão por trás da presença do Brasil na "missão de paz" da ONU no Haiti. Além da OAS, que ganhou uma licitação de US$ 145 milhões para construir uma rodovia, a Coteminas, maior empresa de cama, mesa e banho do mundo e cujo proprietário é o vice presidente José Alencar, negocia com as autoridades da Minustah a instalação de uma planta no país. Sua produção seria exportada para os Estados Unidos, com quem o Haiti tem um acordo de livre comércio. Uma das vantagens oferecidas pelo Haiti seria o salário dos trabalhadores, pois uma costureira em Porto Príncipe recebe US$ 0,50 por hora, muito abaixo dos US$ 3,27 pagos para a mesma profissional no Brasil. É o melhor dos mundos para qualquer capitalista: a exploração mais desbragada é garantida pela força das armas, tudo em nome da reconstrução do país.


A devastação causada pelo terremoto, ao prostrar ainda mais o povo haitiano, foi a senha para governos imperialistas ampliarem sua presença militar. Os Estados Unidos, além do envio de tropas, militarizaram a costa haitiana, enviando modernos navios de guerra e ocuparam o aeroporto de Porto Príncipe, causando dificuldades para o pouso de aviões com ajuda humanitária. Brasil, França e Estados Unidos, ao invés de matarem a fome dos haitianos e socorrerem os feridos, brigam entre si sobre quem continuará garantindo a ordem pública e a vigilância policial no país. Mas essa presença súbita de tropas norte-americana no Haiti, tendo como justificativa ajudar no esforço de assistência às vítimas do terremoto, também deve ser vista como parte da estratégia dos ianques em ampliar o cerco militar a Cuba e Venezuela. Afinal, o Haiti está no meio do caminho entre dois países que representam um desafio à prepotência e arrogância do imperialismo.


Enquanto isso, o povo haitiano padece nas ruas de Porto Príncipe de fome, de sede e da falta de atendimento médico. Se eles reclamam por não lhes chegar comida, água e remédios, esperando por uma ação decisiva da ONU e das tropas da Minustah, isso se deve à completa desestruturação do Estado haitiano, levada a cabo conscientemente por potências estrangeiras que sempre viram no país um mero joguete dos seus interesses.


Para muitos parecerá um absurdo, mas a solução dos problemas haitianos, mesmo os causados pelo terremoto, só começarão a se resolver quando toda e qualquer tropa estrangeira deixar o país. A solução para os terríveis problemas enfrentados pelo Haiti começa, sim, pelo respeito à sua soberania, o que implica a retirada de toda e qualquer tropa estrangeira presente no país. Óbvio que nesse momento o Haiti necessita de ajuda. Mas esta deve ser na forma de comida, remédio, roupa, assistência médica, cancelamento unilateral de sua dívida externa, assistência técnica para retomar a produção industrial e agrícola, tudo sem qualquer tipo de contrapartida. Mas jamais com o envio de tropas, cujo pretexto em prestar ajuda humanitária, serve para aprofundar a submissão do país.


Campinas, janeiro de 2010.



(*) Renato Nucci Junior é militante, membro do Comitê Central e dirigente do PCB-São Paulo

Haiti: estratégia do caos para uma invasão


José Luis Vivas


ALAI AMLATINA, 18/01/2010 – O terremoto que arrasou Porto Príncipe, em 12 de janeiro passado, oferece um pretexto inexorável para justificar a enésima invasão e ocupação militar do Haiti, já ocupado desde 2004, porém agora diretamente pelos principais promotores dessa ocupação, sem intermediários. Motivos, políticos e estratégicos, não faltam. Assim, serviria para repreender o principal intermediário da atual ocupação, Brasil, que apesar dos bons serviços prestados no Haiti não tem se portado da mesma maneira em relação ao recente golpe de Estado em Honduras.


O que temos observado até o momento parece corroborar a tese de que se está preparando uma nova ocupação militar, não humanitária. Vários elementos indicam, como: desavenças com os atuais ocupantes, com a Missão de Paz (MINUSTAH) da ONU, especialmente com o Brasil, que possui o comando militar; entorpecimento da ajuda humanitária e o fomento de uma situação de caos; e uma campanha midiática que consiste na criação de uma imagem de caos e violência, que justificaria uma ocupação ante a opinião pública. Como veremos abaixo, todos esses componentes parecem estar presentes.


Existem motivos para suspeitar de que se está permitindo deliberadamente a deterioração da situação humanitária no Haiti. Por exemplo, a reconhecida falta de coordenação nas tarefas de resgate, o que é amplamente difundido pelos meios de comunicação. Em teoria, corresponderia à ONU dirigir tais tarefas, porém, ao que parece, está foi desautorizada pelos Estados Unidos, que ocuparam rapidamente um dos locais-chaves para a coordenação das tarefas de resgate, o aeroporto. Sem a liderança da ONU e com um Estado haitiano "falido", ou em outras palavras menos Orwelliano, quebrado de forma premeditada, não resta ninguém que possa dirigir as tarefas de resgate eficientemente. Nem tampouco as ONGs que vem recebendo fundos internacionais para exercer muitas das funções que são obrigações do governo haitiano. Não se pode exigir das ONGs as mesmas responsabilidades de um governo, um feito talvez muito conveniente nesses momentos.


Outro elemento é a morosidade no envio de ajuda por parte dos EUA, em contraste com a rapidez demonstrada em sua mobilização militar. Inclusive a distante China parece estar mais adiantada que os Estados Unidos no envio de auxílio. Assim, o ex-tenente geral do exército norte-americano, Russel Honoré, que participou das tarefas de resgate após o furacão Katrina, em 2005, declarou sobre a situação do Haiti pós-terremoto: "penso que isso já foi aprendido durante o Katrina, precisamos levar água e alimentos e começar a evacuar as pessoas... Penso que deveríamos ter começado isso o quanto antes". Por exemplo, enquanto as forças armadas dos EUA parecem ter sido mobilizadas com bastante rapidez, um navio-hospital da marinha está se preparando com mais parcimônia: "é um navio lento, um pouco velho, que tardará uma semana para chegar", declara um porta-voz do Pentágono. Talvez não possam fazer nada melhor com o velho navio, porém deveriam existir outros meios de acelerar as ajudas. Por exemplo, se podia seguir a sugestão pouco herética de Lawrence Korb, ex-secretário assistente de Defesa dos Estados Unidos, de aproveitar os conhecimentos dos cubanos em tarefas de resgate: "devemos parar e pensar que nossa vizinha Cuba conta com alguns dos melhores médicos do mundo... Deveríamos tentar transferi-los em nossos vôos".


Tudo isso nos deixa a impressão de que, no melhor dos casos, as tarefas de resgate não são uma prioridade para o governo norte-americano, ao contrário daquelas puramente militares, como o envio de "3500 soldados da 82ª Divisão Aerotransportadora de Fort Bragg", cuja missão "não está clara", segundo o Christian Science Monitor. Mas, talvez fique mais clara com a explicação do porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Philip Crowley: "Nós não estamos nos apropriando do Haiti. Estamos ajudando a estabilizar o país. Estamos ajudando no fornecimento de material e socorro para salvar vidas, e vamos permanecer aqui a longo prazo para ajudar a reconstruir o Haiti". E também as palavras posteriores da secretária de Estado, Hillary Clinton, assegurando que as forças norte-americanas ficarão no Haiti "hoje, amanhã e provavelmente no futuro".


As divergências diplomáticas com outros países, especialmente com o Brasil, que está no comando das tropas da ONU no Haiti, não tardaram em manifestar-se, o que parece indicar também que a "missão" norte-americana no Haiti vai muito além do puramente humanitário. Até hoje o Brasil havia cumprido diligentemente com o papel que foi designado no Haiti. Suas tropas se dedicavam a controlar e, em certas ocasiões, aterrorizar a população haitiana, especialmente aos mais pobres, da mesma forma que atuam nas favelas do Brasil. Como informa em uma entrevista o jornalista Kim Ives, do Haiti Liberté, a pretensa missão de paz da ONU no Haiti, liderada pelos brasileiros, "é extremamente mal vista [pela população haitiana]. Essa gente está farta e cansada de que estejam gastando milhões, de observar como os jovens militares passam, dando volta por todas as partes com os tanques gigantescos, apontando os fuzis. E, como se sabe, esta é uma força cuja missão é a de submeter ao país".


Era só esperar que os EUA entrassem em conflito com o Brasil caso a intenção do primeiro fosse a de assumir um papel militar no Haiti. O conflito não tardou em iniciar. Nas palavras do secretario geral da ONU, Ban Ki-moon, em 14 de janeiro, "seria absolutamente desejável que todas essas forças estivessem coordenadas pelo comandante da MINUSTAH". Porém os EUA não aceitaram esta proposta. Funcionários do governo dos Estados Unidos indicaram que suas forças "coordenem" suas ações com a direção da MINUSTAH e nada mais: "Vamos atuar sob o comando dos EUA em apoio a uma missão da ONU em nome do governo e do povo haitiano", declara Crowley.


É possível deduzir como essa "coordenação" está funcionando a partir da reação até do ministro de defesa do Brasil, Nelson Jobim, criticando o controle "unilateral" dos Estados Unidos sobre o aeroporto de Porto Príncipe, que segundo ele, foi tomado sem que outros países fossem consultados, e que estaria dificultando a aterrissagem dos aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) carregados de pessoal e mantimentos. Como indica o periódico brasileiro Folha de São Paulo, essa situação "vem causando um pequeno problema diplomático entre Brasil e EUA. Além de retardar a aterrissagem dos aviões da FAB, os brasileiros se queixam de que o controle norte-americano esteja impedindo o acesso da MINUSTAH (Missão de paz da ONU no Haiti, liderada pelos brasileiros) ao local [o aeroporto]".


Apesar das posteriores declarações de Hillary Clinton a Jobim, assegurando que "as forças norte-americanas vão cumprir funções essencialmente humanitárias, sem interferir na segurança pública do país", o fato é que tais funções "humanitárias" estão sendo comandadas "não por agências civis do governo... e sim pelo Pentágono", através do SOUTHCOM (Comando Sul dos Estados Unidos), cuja missão é a de "conduzir operações militares e proporcionar a cooperação na segurança para alcançar objetivos estratégicos dos Estados Unidos", como assinala Michel Chossudovsky, do Global Research.


Outro elemento importante é a aparente instrumentalização de um suposto estado de caos no Haiti, o que também poderia ter sido contribuído pela talvez premeditada falta de coordenação na distribuição da ajuda humanitária. O objetivo aqui seria o de criar uma imagem de caos e violência que justifique a invasão ante a opinião pública e, para isso, é necessário contar com a estreita colaboração dos grandes meios de informação. Ao menos os meios mais afinados com o governo norte-americano parecem não ter perdido tempo neste sentido. Desde um primeiro momento vem tratando de dramatizar a situação, por exemplo, através da difusão de rumores de rajadas de supostos tiroteios, que ninguém mais parece ter ouvido em Porto Príncipe, ou da formação de novos bandos criminosos. Assim, dois dias depois do terremoto, já podíamos ler em um artigo intitulado "Tomarão os bandos criminosos o controle do caos haitiano?", as seguintes pesarosas palavras: "quando a escuridão cobriu a cidade de Porto Príncipe, assolada pelo terremoto, moradores informaram que escutaram tiros. Isso dificilmente é uma surpresa: no Haiti, durante as emergências – naturais ou políticas – tiros podem ser tão onipresentes na noite como o latido dos cachorros, como grupos armados apossando-se das ruas". O fato de que ninguém parece ter ouvido esses tiros nem visto tais gangues tomando as ruas, pode indicar que a intenção aqui é a de criar uma falsa imagem de caos, o que torna mais aceitável para a opinião pública uma eventual invasão e ocupação do país.


Agora, a maior parte dos meios insiste nessas imagens de caos e violência. Porém, há exceções. Assim, como explica o coordenador do Canadian Haiti Action Network, Roger Annis, referindo-se a uma reportagem da BBC que não mostra nada dessa suposta violência, o que "contrasta fortemente com as advertências de saques e violência que chegam em ondas pelos canais de notícias, tais como a CNN", e que "estão sendo reproduzidas pelo secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates".


O mais macabro de tudo isso é que as ajudas poderiam não estar chegando aos necessitados devido a uma intenção deliberada de provocar esse mesmo estado de caos e violência que parece não existir até o momento. Segundo Roger Annis "está crescendo a evidência acerca de uma negligência monstruosa induzida ao povo haitiano após três dias do terremoto. À medida que as provisões médicas vitais, alimentos, substâncias químicas para a purificação da água e veículos se estão amontoando no aeroporto de Porto Príncipe, e que os meios estão informando sobre um esforço internacional massivo para fornecer ajuda de emergência, os moradores da cidade destroçada se perguntam quando poderão ver algum tipo de ajuda".


O repórter da BBC, Andy Gallaguer, declara também que andou por todas as partes da capital durante sexta-feira, 15 de janeiro, e que "não observou nada mais que cortesia da parte dos haitianos que encontrou. Em toda parte foi levado pelos moradores para ver o que havia acontecido em suas vizinhanças, suas casas e suas vidas. E então perguntavam: onde estão as ajudas?". Sobre a declaração do secretário de defesa norte-americano que motivos de "segurança" estariam impedindo a distribuição de ajuda, Gallaguer contesta que "eu não estou vendo nada disso". Quanto a situação no aeroporto, informa que "há uma grande quantidade de material em solo e muita gente ali. Eu não sei que problemas há com a entrega". Igualmente, segundo palavras de um observador local, "os agentes dos meios de comunicação estão buscando histórias de haitianos desesperados, que estão atuando de forma histérica, quando, na realidade o mais comum é vê-los agindo de forma sossegada. Enquanto isso, a comunidade internacional, a elite e os políticos estão irritados com esse assunto e nenhum dos haitianos parece ter a mínima idéia do que está passando".


Não somente não há planos de transportar médicos cubanos à ilha, como a ocupação do aeroporto se deu imediatamente depois da chegada de 30 médicos cubanos para reunir-se com os cerca de 300 que já estavam na ilha a mais de um ano. E muitos suspeitam que isso pode ter algo relacionado com a ocupação do aeroporto. Trinidad & Tobago Express, por exemplo, informa que "uma missão de ajuda emergencial da Comunidade Caribenha (Caricom) ao Haiti, incluindo os chefes de governos e funcionários técnicos de destaque, não puderam obter permissão esta sexta-feira para aterrissar no aeroporto do país devastado, agora sob o controle dos EUA". Além disso, "indagado acerca de se as dificuldades encontradas pela missão de Caricom poderiam estar relacionadas com informes de que as autoridades norte-americanas não estariam ansiosas em facilitar a aterrissagem das naves procedentes de Cuba e Venezuela, o primeiro ministro Golding [da Jamaica] respondeu que 'somente espera que não haja nenhuma verdade nesse tipo de pensamento imaturo, a luz da espantosa extensão da tragédia do Haiti'...".


O seguinte testemunho é do diretor do Ciné Institute de Jacmel, David Belle, também contradiz radicalmente a imagem de caos e violência difundida pelos meios de comunicação. "Várias pessoas comentaram comigo que muitos meios informativos norte-americanos pintam o Haiti como um barril de pólvora pronto para explodir. Disseram-me que as principais reportagens dos grandes meios só falam de violência e caos. Nada está mais distante da realidade... Nenhuma única vez fui testemunha de um só ato de agressão ou violência. Ao contrário, temos visto vizinhos ajudando vizinhos e amigos ajudando amigos e estranhos. Temos visto vizinhos escavando escombros com as mãos nuas para encontrar sobreviventes. Temos visto curandeiros tradicionais tratando dos feridos; temos visto cerimônias solenes anteriores aos enterros coletivos e moradores esperando, pacientemente, sob um sol abrasador, com nada mais que uns poucos pertences que sobraram. Uma cidade mutilada de dois milhões de seres esperando ajuda, remédio, alimento e água. A maioria não recebeu nada. O Haiti pode orgulhar-se de seus sobreviventes. Sua dignidade e decência frente a esta tragédia são assombrosas".


Todos esses elementos justificam a suspeita de que está em marcha uma macabra estratégia de caos para justificar uma invasão e ocupação que, pelo visto, nada terá de humanitária.


* Versão completa desse artigo em http://www.alainet.org/active/35579


Tradução: Maria Fernanda Magalhães Scelza



sábado, 23 de janeiro de 2010

Haiti: terremoto é desastre natural, mas a pobreza extrema, não

21/01/2010

Eduardo Sales de Lima e Igor Ojeda da Redação do jornal Brasil de Fato


As imagens das TVs de todo o mundo mostram um verdadeiro inferno. Destruição total, corpos estirados, homens e mulheres aos prantos. Os relatos dos repórteres nos jornais que foram a campo não são diferentes. Saques a supermercados, violência, desespero.




Quase em uníssono, os meios decretaram: os efeitos do terremoto de 7 graus na escala Richter ocorrido no dia 12 no Haiti são ainda mais graves devido à extrema pobreza em que vive a população do país, o de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do hemisfério ocidental. A análise um tanto óbvia não é incorreta, mas a imprensa em geral "esqueceu-se" de explicar o porquê de tanta miséria, praticamente naturalizando o subdesenvolvimento acentuado do Haiti.




"É preciso que se diga que se, de fato, as causas da tragédia são naturais, nem todos os efeitos o são", opina Aderson Bussinger Carvalho, advogado e ex-conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que visitou o país em julho de 2007. "É preciso saber que indústrias exploram a mão-de-obra barata haitiana, cujos produtos são exportados para o mercado dos EUA, assegurando imensos lucros que não se revertem em favor do povo. As casas construídas somente com areia, a ausência de hospitais, a falta de luz e água... tudo isso vem de antes do terremoto", afirma.




Pobreza extrema


Atualmente, 80% dos haitianos vivem abaixo da linha de pobreza, sendo que 54% se encontram na extrema pobreza. A mortalidade infantil é de cerca de 60 mortes para cada mil nascimentos (no Brasil, a proporção está em torno de 22 para mil), a expectativa de vida é de 60 anos e o analfabetismo atinge 47,1% da população.




Além disso, o país sofre com a falta de infra-estrutura e indústria nacional. As estradas são bastante precárias, assim como as áreas de energia, telecomunicações e transporte. Dois terços dos haitianos dependem da agropecuária para sobreviver, enquanto apenas 9% trabalham em fábricas, em sua maioria nas chamadas maquiladoras, unidades especializadas em produção de manufaturados para exportação que se utilizam de mão-de-obra barata. "Durante o ano de 2009, percorremos todo o Haiti. Nossa brigada percorreu dez departamentos e conhecemos a situação de pobreza em que vive a imensa maioria da sociedade haitiana", relata José Luis Patrola, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e integrante da Brigada Internacionalista Dessalines da Via Campesina, que atua com as organizações camponesas do país.




Triste e estranha realidade para uma nação que foi a segunda das Américas a se tornar independente (da França) e a primeira a abolir a escravidão, em 1804. Ou seja, que tinha tudo para oferecer uma vida digna para seus habitantes.




Construção histórica


"A pobreza extrema do Haiti é uma construção histórica bi-centenária, produto da incessante intervenção colonialista e imperialista, em boa parte devido precisamente a ter sido o Haiti a primeira e única nação negreira onde os trabalhadores escravizados insurrecionados obtiveram a liberdade. Isso após derrotar expedições militares francesa, inglesa e espanhola", explica Mário Maestri, historiador e professor do Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul.




Segundo ele, a partir de então, o Haiti passou a ser temido pelos EUA, pois poderia servir como exemplo aos escravos estadunidenses. Assim, o país passou a "ser objeto de bloqueio quase total, desde seus primeiros anos, pelas nações metropolitanas e americanas independentes. Já em 1825, foi obrigado a pagar, sob pena de agressão militar, pesadíssima indenização à França. Conheceu nas décadas seguintes intervenções militares dos EUA, que, mesmo após a desocupação, em 1934, transformaram o país em semi-colônia, sobretudo através das sinistras ditaduras dos Duvaliers, Papa-Doc e seu filho [entre 1957 e 1986]".




De acordo com Osvaldo Coggiola, professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), o Haiti não é uma exceção na região em que se encontra, mas um caso extremo da dominação imposta pelos países centrais do capitalismo. Assim, para ele, "atribuir seus males à incapacidade da sua população, descendente de escravos forçados a trabalhar na ilha pelos colonialistas franceses, é um conceito abertamente racista. A classe dominante, ela sim, é corrupta até a medula. Se chegar ajuda para o governo local, vão roubar, para vender e chantagear a população".




Casas amontoadas


Além da pobreza, outro fator vem sendo apontado como potencializador dos efeitos do terremoto, embora ambos estejam fortemente vinculados: a grande quantidade de pessoas vivendo nas cidades (especialmente na capital, Porto Príncipe) em casas amontoadas e construídas precariamente, o que fez com que desabassem mais facilmente. Segundo Patrola, o desastre deixou evidente a precaridade do sistema urbano no Haiti. "Porto Príncipe e as favelas de Cité Soleil e Bel-air foram construídas de forma espontânea com a ausência de recursos mínimos de construção civil. Isso potencializou a destruição".




Aqui, outra triste e estranha realidade: como se explica que um país cuja agricultura representa 28% do PIB (no Brasil, esse índice é de 7%) possua um índice de êxodo rural tão acentuado e tenha 47% de sua população vivendo na zona urbana?




"Pela eliminação das culturas agrárias locais pelos produtos importados, inclusive os das famosas 'ajudas internacionais'. O subdesenvolvimento eliminou as florestas locais, pois o carvão é quase a única fonte de energia no interior. Em 1970, o Haiti era quase auto-suficiente em alimentação, hoje importa 60% do que come", responde Osvaldo Coggiola. Segundo dados da ONU, entre 2005 e 2010, a população das cidades haitianas cresceu 4,5% por ano.




Migração


O historiador Mário Maestri explica que a revolução de 1804 teve como consequência a divisão dos latifúndios existentes em lotes familiares, que retomaram as tradições camponesas africanas, proporcionando uma independência alimentar. No entanto, "as intervenções imperialistas, com a colaboração das frágeis e corruptas elites negras e mulatas, desdobraram-se para metamorfosear a agricultura familiar-camponesa em mercantil. Levantes camponeses foram duramente reprimidos, para reconstituir a grande propriedade", diz.




Patrola, da brigada da Via Campesina no Haiti, responsabiliza ainda as políticas neoliberais mais recentes pelo "desmonte" do campo. "A abertura comercial está destruindo a agricultura haitiana. O Haiti é o quarto importador de arroz dos Estados Unidos", diz.




O resultado de todo esse processo vem sendo uma grande migração para a cidade. E hoje, de acordo com Maestri, as enormes massas de miseráveis urbanos são vistas como mão-de-obra extremamente barata para as indústrias maquiladoras que se estabeleceram no Haiti.



Haiti: eis o que é imperialismo e o que é subimperialismo - Por: Duarte Pereira

(Duarte Pereira)

Está-se consumando a crônica anunciada e previsível da nova ocupação do Haiti pelos Estados Unidos, desta vez aproveitando o terremoto que devastou o país e sua capital. Os Estados Unidos já desembarcaram 11 mil militares no país. Ontem, com tropas armadas e uniformizadas para combate, transportadas em helicópteros de guerra, ocuparam o palácio presidencial em Porto Príncipe. O aeroporto, não esqueçamos, continua sendo controlado e operado pelos Estados Unidos, que hastearam sua bandeira no local e decidem que aviões podem pousar. Nos últimos dias, deram prioridade a suas aeronaves, principalmente militares, prejudicando o desembarque da ajuda enviada por outros países e por organizações não-governamentais. A prioridade foi a segurança, não a vida da população haitiana, principalmente pobre. O ministro francês da Cooperação, Alain Joyandet, chegou a protestar: "Precisamos ajudar o Haiti, não ocupá-lo." É verdade que, tendo cumprido o cronograma inicial de desembarque de suas tropas, os Estados Unidos poderão autorizar, nos próximos dias, o pouso de um número maior de aviões de outros países, com técnicos e equipamentos para remoção de destroços, médicos e remédios para atendimento dos feridos, água e alimentos para a população desabrigada e desempregada. A essa altura, porém, a possibilidade de encontrar pessoas soterradas com vida será mínima e excepcional.


Sem que a mídia dê atenção a este aspecto, os Estados Unidos estão aumentando também o controle do porto que dá acesso à capital e de toda a área litorânea do Haiti, com um porta-aviões, um navio equipado com um hospital de campanha e vários navios da Guarda Costeira, visando a socorrer feridos, mas também a selecionar e controlar a aproximação de navios de ajuda de outros países, como o enviado pela Venezuela com combustível, e a impedir a emigração desesperada de haitianos para a costa estadunidense em pequenas embarcações...


Não podendo justificar suas ações arrogantes e unilaterais com ordens das Nações Unidas, o governo de Washington tem argumentado que atua a pedido do governo haitiano. Mas que soberania pode ter um governo, como o do presidente René Préval, que não dispõe sequer de forças policiais e de equipamentos de comunicação e transporte para manter a ordem pública e organizar o salvamento de seus cidadãos? É significativo também que o plano de salvamento e reconstrução do Haiti pelos Estados Unidos tenha sido anunciado, em conjunto, pelo presidente Barack Obama e pelos ex-presidentes Clinton e Bush – o mesmo Bush que demorou tanto a agir quando o furacão Katrina destruiu uma grande área dos Estados Unidos. Quando os interesses estratégicos da superpotência estadunidense e de suas empresas transnacionais estão em jogo, prevalece como sempre o consenso bipartidário entre "democratas" e "republicanos" – aliás, uma confluência bipartidária semelhante se ensaia agora no Brasil com o PSDB e o PT, apesar das acirradas disputas nas fases de eleição.


O jornalista Roberto Godoy, especializado em assuntos militares, escreve no "Estadão" de hoje: "Os Estados Unidos estão fazendo no Haiti o que sabem fazer melhor: ocupar, assumir, controlar. Decidida em Washington, a operação de suporte às vítimas da devastação, em quatro horas, tinha 2 mil militares mobilizados – e metade deles já seguia para Porto Príncipe – enquanto o resto do mundo apenas tomava conhecimento da tragédia. (...) É a Doutrina Powell, criada no fim dos anos 80 pelo então chefe do Estado-Maior Conjunto general Colin Powell, aplicada em tempo de paz. Ela prevê que os Estados Unidos não devem entrar em ação a não ser com superioridade arrasadora. (...) No sábado, oficiais americanos [seria mais correto escrever estadunidenses, porque americanos somos todos nós] estavam no comando do tráfego aéreo. Os paraquedistas da 82ª Divisão e os fuzileiros navais (...) são treinados para o combate e também para missões de resgate. Movimentam-se em helicópteros e veículos convertidos em ambulâncias leves. A retaguarda é poderosa. Um porta-aviões virou central logística e um navio-hospital de mil leitos chegou no domingo. Ontem, aviões dos Estados Unidos ocupavam 7 das 11 posições de parada remanescentes no aeroporto."


A mídia do grande capital, exagerando os saques e os conflitos, cumpriu seu papel de preparar a opinião pública para aceitar a operação político-militar dos Estados Unidos como necessária e benevolente. Na realidade, os Estados Unidos têm contribuído para acirrar os conflitos ao atrasar a ajuda humanitária de outros países e utilizar aviões e helicópteros para despejar suprimentos aleatoriamente sobre uma população sedenta, faminta e desorganizada. Até mesmo o general brasileiro Floriano Peixoto, comandante da Minustah (Missão de Estabilização das Nações Unidas), ponderou em videoconferência que os casos mais graves de violência não são generalizados e disse que as ruas de Porto Príncipe estão desobstruídas, o que facilita a ação das forças de segurança. Na avaliação do general, a situação se mostra menos grave do que a versão difundida pela imprensa. Além disso, quem tem experiência política e já participou da resistência a regimes entreguistas e autoritários não pode deixar de receber com ceticismo a qualificação fácil e indiferenciada, difundida pela mídia, de que todos os presos que escaparam dos presídios destruídos pelo terremoto são criminosos comuns e integrantes de "gangues de bandidos". Muitos oficiais e soldados do antigo Exército haitiano formaram milícias, que declararam seu apoio ao último presidente livremente eleito Jean-Bertrand Aristide, depois que ele foi deposto em 2004. Seqüestrado por tropas estadunidenses e levado à força para a África do Sul, bem longe do Haiti, o ex-presidente Aristide continua impedido de voltar ao país e seu partido foi proibido de participar das últimas eleições realizadas sob o controle da Minustah.


Com as diferenças secundárias de motivação e de situação interna, o roteiro seguido pelos Estados Unidos no Haiti é, portanto, essencialmente, o mesmo adotado no Iraque ou no Afeganistão: primeiro, destroem-se os Estados nacionais que esbocem qualquer rebeldia, instalando a devastação econômica e social e o caos político; depois, utilizam-se essas circunstâncias deterioradas para justificar a construção de Estados satélites; por último, esses Estados satélites e corruptos se revelam incapazes de garantir a paz, resgatar a dignidade nacional e melhorar o padrão de vida da população (com as exceções de praxe das elites colaboracionistas), justificando que a ocupação estadunidense se prolongue indefinidamente. A crise aprofundada pela intervenção externa cria, enquanto isso, oportunidades de novos negócios lucrativos para os fabricantes de armas, as empresas de segurança e as grandes construtoras dos Estados Unidos e de seus aliados.


Para dissipar dúvidas sobre as reais intenções da intervenção "emergencial" e "humanitária" dos Estados Unidos no Haiti, o diplomata Greg Adams, enviado ao país caribenho como porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, declarou ao "Estadão" em Porto Príncipe: "É muito cedo para estabelecer prazos [para a retirada das tropas estadunidenses] e ficaremos aqui o tempo que for necessário [lembremo-nos de declarações semelhantes tornadas públicas no início da ocupação do Iraque]. Havia tropas estrangeiras no Haiti antes do terremoto [ah, é?]. Com a tragédia, além de todos os outros problemas, não vejo uma data-limite no futuro próximo para falarmos aos haitianos 'ok, agora é com vocês'. Ficaremos aqui por um bom tempo e acho que o Brasil também."


A referência à ação coadjuvante e subordinada do Brasil foi bem esperta. Que autoridade moral pode ter o governo brasileiro de protestar contra a ação estadunidense se tem participado da intervenção política e militar nos assuntos internos do Haiti, ainda que com a chancela formal das Nações Unidas, chancela já utilizada ao longo da historia da entidade para encobrir tantas outras intervenções? Participando das operações de segurança – ou seja, em bom português, de repressão – com o beneplácito e em benefício dos Estados Unidos, o Brasil espera ganhar o prêmio de consolação de tomar parte nos negócios de reconstrução do país. Aliás, grandes construtoras brasileiras, como a OAS e a Odebrecht, já enviaram equipes técnicas e equipamentos pesados para o Haiti, posicionando-se para a disputa que virá.


Quem afirma que não existe mais imperialismo no século XXI ou põe em dúvida o conceito de subimperialismo, utilizado para caracterizar a política externa atual do Brasil, principalmente na América Latina e no Caribe, tem assim a oportunidade de aprender, em cores e on line, o conteúdo concreto desses conceitos e dessas práticas. Abrindo bem os olhos, os patriotas e democratas brasileiros têm o dever de exigir que o Brasil renuncie ao comando militar da Minustah, retire progressivamente suas tropas do Haiti e se limite às ações de cunho efetivamente humanitário. O Haiti não precisa só de ajuda, precisa de soberania. Que os Estados Unidos realizem seu plano de intervenção e de construção de um Estado satélite no Haiti com seus próprios recursos humanos e materiais e sob sua exclusiva responsabilidade. Assim, pelo menos, a situação ficará mais clara e se tornará mais fácil mobilizar as forças antiimperialistas e democráticas no Haiti e nos demais países da América Latina e do Caribe. Não percamos de vista que um império em declínio, na desesperada tentativa de reverter o curso histórico que o debilita, pode tornar-se mais perigoso e aventureiro do que um império em ascensão e paciente.


Estou fechando este parêntese sobre a tragédia haitiana, porque já está claro que não se trata apenas de uma tragédia natural e humanitária, mas sobretudo política e militar. Recentemente, um terremoto devastou uma grande região da China, deixando 87 mil mortos, segundo as estimativas oficiais. Porque havia e há na China, apesar de sua pobreza ainda grande, um Estado soberano e ativo, foi possível lidar com as conseqüências da tragédia sem permitir a intervenção estrangeira no comando das operações de socorro e reconstrução ou o desembarque de tropas de outros países. A grande tragédia do Haiti foi a destruição progressiva de seu Estado nas últimas décadas, com a dissolução de suas forças armadas e policiais, a precarização de seus serviços públicos e a desorganização e divisão de sua população.



20/1/2010






O suposto atentado ao avião

No cenário mundial existem seis processos de inevitável desfecho em curto prazo: a resolução social da crise econômica mundial (com o seu epicentro nos EUA e na Europa), o ataque militar contra as usinas iranianas, a escalada no Afeganistão com a ocupação militar do Paquistão, as ações militares contra o Sudão, a Somália e o Iêmen, novo conflito armado no Cáucaso ou na Eurásia (como parte do teatro da Guerra Fria EUA-Rússia) e um ataque "terrorista" (ou vários) semelhantes ao 11 de setembro na Europa ou nos EUA. Em todos os casos, o "terrorismo" (uma arma estratégica da guerra de Quarta Geração) irá agir como um gatilho de eventos e unificador dos acontecimentos que se avizinham no teatro de conflitos internacionais para a preservação da ordem imperial regente.

Revendo a imprensa internacional em várias línguas, é unânime a única versão frente ao suposto atentado do qual seria vítima os EUA em 25 de dezembro de 2009, cujo autor, Abdulmutallab Omar Faruk, nigeriano de apenas 23 anos, negou todas as acusações contra ele imputadas.



Esta versão exclusiva do evento explicitou, do ponto de vista dos meios de comunicação, que todos os jornais utilizaram a mesma fonte de informação, essencialmente três agências internacionais de notícias: AFP, EFE, Reuters. A explicação para a versão unânime é de que as agências utilizaram a mesma fonte, as agências de inteligência dos EUA, principalmente a CIA.



Como produzida em um laboratório, a versão do ato está espalhada por todo o mundo e se impôs como critério de verdade, sem qualquer crítica, com uma única fonte. Agora é um dado, sobre o qual as decisões políticas são tomadas. Todos têm aceitado passivamente que um ataque ia ser cometido contra os EUA pelo difuso "terrorismo internacional".



A montagem do "ataque terrorista" frustrado em um avião em Dezembro passado, a reciclagem da ameaça da Al-Qaeda no Iêmen, as denúncias de Obama e dos líderes europeus sobre complôs "terroristas islâmicos" em movimento, as detenções em massa de "suspeitos" nos EUA e na Europa, são partes operativas do lançamento (e aggiornamiento) de uma nova fase da "contra-guerra terrorista" em uma escala global.



A ocupação militar do Iêmen (justificada pela "ameaça da Al Qaeda") é vital para uma projeção de controle sobre o Chifre da África, a chave para o barril de pólvora petroleiro islâmico que as corporações estadunidenses pretendem arrebatar dos seus concorrentes asiáticos, russos e europeus.



Quem serve a este atentado?



O atentado, ou melhor, o suposto atentado, nunca aconteceu. É uma operação da CIA para impor ao presidente Obama o manejo da política internacional com predominância no aspecto militar.



Neste sentido, Bin Laden (que não está claro se está vivo ou morto) e a Al Qaeda são uma carta valiosa que a CIA e os serviços estadunidenses e europeus sempre se reservam para resolver qualquer "saída" imperial (econômica ou militar) que exija um consenso internacional.



Bem utilizada, a ferramenta do "terrorismo" (uma arma que combina a violência militar com a guerra de quarta geração) tem como objetivo principal criar um conflito (ou uma crise) e, em seguida, fornecer a mais favorável solução para os interesses que o império defende.


Isso coloca como protagonista de primeira ordem o complexo militar estadunidense, e tira o protagonismo do chefe de Estado. Obama havia anunciado a diplomacia do diálogo como eixo da política externa dos EUA. Com este suposto ataque, a CIA atualiza um inimigo amorfo, a Al Qaeda, e envia uma mensagem clara para o executivo, sobre o fato de que os EUA, como poder militar, não devem buscar o consenso dos seus interesses estratégicos com ninguém, nem mesmo com a Inglaterra. Não se esqueçam de que a Al Qaeda é uma criação da CIA para lutar contra a presença russa no Afeganistão.



Com isso, voltamos totalmente para a era Bush, que tem uma linha de continuidade com o golpe em Honduras e é complementada pela decisão de enviar reforços ao Afeganistão e ao novo foco de conflito no Iêmen. Cortam-se as asas do Prêmio Nobel da Paz; o executivo está preso no complexo militar estadunidense. O predomínio militar sobre o diplomático para resolver crises enterra definitivamente a ONU e seu conceito de Nações Unidas. Todas as crise de agora em diante, em tempos de recessão e crise financeira do modelo capitalista de produção nos EUA, se resolvem militarmente. Não estamos tentando dizer que não foi assim antes; estamos dizendo que se legitima ainda mais, em especial quando o sionismo de Israel tem de enfrentar o desafio do Irã.



Se Obama expressou dúvidas sobre o apoio a Israel para uma possível solução militar para a crise nuclear com o Irã, este novo cenário alinha Obama na via militar para resolver a crise com o Irã.



Este suposto ataque recauchuta o discurso sobre a segurança e a ameaça terrorista, já anunciado por um porta-voz do Departamento de Defesa: "queremos que todos os nossos aliados tenham acesso às mais recentes tecnologias de segurança." Os scanners nos aeroportos, e todos os sistemas eletrônicos de segurança terão de ser adquiridos por cada país com o tráfego de passageiros em solo estadunidense.



A isso acrescentamos as medidas que restringem a privacidade, que promovem o controle social, a vídeo-vigilância, escutas telefônicas, em última análise, a invasão e o controle social em toda a vida social e privada, que garantem o status quo em vigor.



Além de alimentar um novo ciclo expansivo de lucro para as empresas de armamento e petróleo, serve como um argumento para justificar uma nova escalada no Afeganistão e um quase anunciado desembarque dos EUA no Paquistão, um aliado caótico que Washington necessita controlar em função da sua estratégia no Afeganistão e no resto da região.



Obama se tornou um prisioneiro do aparato tecno-militar estadunidense, Guantánamo não foi fechada em janeiro de 2010, como prometido, e agora não há data de encerramento; pensou-se em uma mudança em relação ao infame bloqueio contra o povo cubano. Nada disso, Cuba está na lista estadunidense de países que patrocinam o terrorismo.



Este cenário é catastrófico para qualquer construção alternativa no mundo.

Especialmente na América Latina a situação se agrava com as sete bases militares estadunidenses em solo colombiano.



Se ainda sem instalar totalmente essas bases já é violado o espaço aéreo venezuelano, imaginem todas as bases em pleno funcionamento.



A lacônica frase de Obama contra a responsabilidade por este suposto atentado "a culpa é minha responsabilidade, eu tenho uma solene responsabilidade de defender o meu país" dá a impressão de que ele já deixou de fato de ser o presidente dos EUA.



Este cenário complexo, mas não difícil de desvendar, impõe aos povos a unidade contra o militarismo, contra o fascismo do capitalismo internacional. Unidade de ação, unidade ideológica, estratégica e tática para defender a humanidade. Essa resistência só os povos do mundo podem fazer, trabalhadores urbanos e rurais, os estudantes, porque o inimigo é um só.



Esta luta político-militar, não podemos esquecer, é também ideológica. De acordo com os interesses imperialistas, são capazes de construir uma "verdade", como inventar um suposto ataque.



No momento em que os EUA decidam atacar as instalações nucleares de Teerã, ou lançar operações militares no Paquistão, África ou no Cáucaso, vão necessitar desesperadamente de um ou mais "atentados terroristas reais" para amenizar a resistência dos aliados e obter um consenso internacional para as novas ocupações.



Precisamente, estas são as principais funções que vem desempenhado o "terrorismo islâmico" (como uma arma de guerra do império), controlada pela CIA desde o 11 de setembro até aqui.


Fonte: LA GILADA


http://primeraguerraglobal.blogspot.com/




segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Paraguai. O Estado de Exceção: lembrança do Estado de Sítio ditatorial


Comunicado a opinião pública nacional e internacional

O Estado de Exceção: lembrança do Estado de Sítio ditatorial



Ante do golpismo e a desestabilização causada pela oposição direitista e terrorista que afeta nosso país, e as repercussões que se vão gerando desde diferentes organizações e atores da política nacional, declaramos o seguinte:

1 - A nossa solidariedade com a família Zavala e as famílias dos companheiros Martín Ocampos, Juan Ramón González, Enrique Brítez, Bienvenido Melgarejo e Andrew Ozuna Grance, camaradas mortos entre 2008 e 2009, totalizando mais de 100 trabalhadores rurais mortos pelos poderes de fato e pelo aparato policial, judicial e burocrático, ainda intactos sob o atual governo.


Além disso, a nossa solidariedade alcança vários compatriotas que foram torturados pela polícia, que é contrária ao projeto e ao processo de mudança impulsionado pelas mobilizações populares.


Sabemos que o problema de fundo é a estrutura socioeconômica e modelo de segurança em vigor no nosso país e, portanto, nós estendemos a nossa voz em protesto contra as injustiças que sofremos como povo.


2 - Nós categoricamente rejeitamos a proposta do Estado de Exceção (Estado de Sítio) formulado por Federico Franco, um dos líderes da conspiração golpista, que violando sua função constitucional como vice-presidente, continua a fazer alianças com setores da história mais negra da política nacional, diretamente envolvidos com a máfia, o tráfico de drogas, o latifúndio e o terrorismo de Estado, a fim de bloquear o processo de mudança e empreender uma sinistra volta ao passado.


Já sem nenhum Estado de Exceção tinham sido cometidos, e continuam a cometer violações das garantias dos nossos compatriotas, principalmente no interior do país, e agora uma medida como a suspensão dos direitos e garantias constitucionais teria graves conseqüências para o movimento popular, que na verdade constitui uma ameaça para toda a oligarquia que se enriqueceu com sangue, fogo, violações e mentiras, quebrando e martirizando a vida de milhares de paraguaios que lutam por um país onde seus filhos possam desenvolver livremente as suas capacidades.


Precisamente, por este último fato é que rejeitamos esta medida: porque sabemos perfeitamente os interesses que estão primando nas cabeças e na política de ordenar e dirigir o trabalho de uma força policial que já está "colombonizada" com o permanente assessoramento de uma instituição terrorista como o Departamento Administrativo de Segurança (DAS) da Colômbia, que por sua vez é orientado pela CIA norte-americana.


3 - Como povo já temos experiência suficiente, com décadas de ditadura, na violenta repressão que a polícia impõe contra as famílias dos trabalhadores rurais organizados, com os trabalhadores e proletários em geral, por isso estamos seguros de que a proposta de um Estado de Exceção serve apenas para aguçar a repressão no campo, decapitando o movimento popular e provocando conflitos entre o nosso povo e as forças de segurança.


4 - A partir do Partido Comunista Paraguaio, acreditamos que podemos e devemos lutar contra os restos do terrorismo de Estado e o terrorismo manipulado pelos poderes da máfia e das lideranças da cúpula policial, fiscal, judicial e burocrática que com a violência irracional de marginais da vida política e social democrática e libertadora.


5 – A segurança, a pacificação e a tranqüilidade do nosso povo só serão alcançadas através do desmantelamento do aparelho de repressão e de terror, com a participação ativa dos movimentos sociais e políticos do campo popular, com a maior transparência e acompanhamento possível de personalidades do DDHH, uma vez que os militantes patrióticos, progressistas e revolucionários não têm nada a esconder e ainda muito a contribuir para o nosso país acabar a máfia, o tráfico de drogas, as grandes propriedades e o terror.


Não ao Estado de Exceção!


Não a colombianização do nosso país!


Pela participação ativa do movimento popular na luta contra todo tipo de terrorismo, em especial contra o terrorismo de Estado!


Comissão Política do Partido Comunista Paraguaio


Asunción, 15 de Janeiro de 2010.

As FARC são invencíveis!

Escrito por Dax Toscano Segovia

Nesta entrevista, o importante jornalista colombiano analisa a atualidade e a história das FARC, o maior grupo guerrilheiro que existe na América.

À "belíssima Lucero" e ao seu companheiro de luta, Simón Trinidad


Resumo latino-americano/ ABP – Dias antes de contatar Jorge Enrique Botero, o entrevistador começou a ler um livro de autoria do jornalista colombiano, intitulado "Simón Trinidad, um homem de ferro". A leitura o fascinou desde o início ao tratar das passagens da vida de um dos comandantes das FARC, hoje detido injustamente num cárcere norte-americano, país para o qual foi extraditado com o aval de Uribe, mas também por explicar a história de resistência e rebeldia de um povo que vem sofrendo os embates de uma criminosa oligarquia criolla e do voraz imperialismo ianque, o que permite compreender porque a insurgência colombiana é a força revolucionária que, ao levantar as armas, se constituiu em exército e os colombianos que formam parte dessa massa são despossuídos, sem-terras e violentados por esses grupos do poder e seus criminosos aparatos militares e paramilitares.


Botero é um jornalista diferente daqueles melindrosos e cretinos que vemos nos cenários dos escritórios das indústrias midiáticas. Trajando seu uniforme de combate, Jorge Enrique percorre os lugares mais recônditos para indagar, investigar sobre os acontecimentos, sobretudo para, através de uma prática militante não apenas relacionada a sua atividade de jornalista, mas sim com a causa revolucionária, divulgar com objetividade e veracidade o que ocorre nos locais onde avança a luta pela conquista de uma Nova Colômbia.


Apesar das acusações feitas contra ele pelo narco-paramilitar presidente da Colômbia, Álvaro Uribe Vélez e seus auxiliares, não possui nenhum temor de expor com clareza as mentiras que se divulgam sobre as FARC-EP através de uma muito efetiva campanha propagandística, difundida pelos meios de comunicação a serviço da oligarquia colombiana e do imperialismo ianque.


Com seus conhecimentos, resultado de suas vivências e sua atividade como repórter, assim como de seu amplo saber sobre a história de seu país, pôde demonstrar que a insurgência colombiana não é uma agrupação terrorista, e sim uma formação constituída de homens e mulheres com profundas convicções e ideais revolucionários que lutam para mudar a realidade vergonhosa a que está submetida a maioria de colombianas e colombianos.


Jorge Enrique Botero representa o que os jornalistas deveriam ser: profundos conhecedores da história e realidade social dos povos, indagadores assíduos que buscam a raiz das coisas, pessoas com convicções profundas e com sólidos princípios, lutadores e revolucionários da causa dos oprimidos e explorados e não rasteiros e obedientes reprodutores dos donos das indústrias midiáticas.


Com Botero é possível compreender em sua totalidade o que é a insurgência colombiana, representada, principalmente, pelas FARC-EP.


1. A propaganda do imperialismo e da oligarquia colombiana representada, principalmente, pelas indústrias midiáticas qualificam as FARC-EP como uma organização terrorista, de narcotraficantes. Como jornalista e investigador, o que pode dizer sobre essas afirmações?


Responderia a você, Dax, o mesmo que disse a um tribunal dos EUA, quando julgavam um dos comandantes das FARC extraditados para esse país, Simón Trinidad, em virtude de um tratado que existe entre o governo da Colômbia e o dos EUA. Um magistrado perguntou o que eram as FARC para mim. Respondi que para mim as FARC são uma organização político-militar que levanta armas contra o governo colombiano há quase 50 anos, que possui uma estrutura e uma forma organizativa que permitem a existência de um exército rebelde dentro do território colombiano e que é inspirada em ideais e convicções políticas e ideológicas, estendida por todo o território colombiano e que tem uma decidida vocação de poder e que, neste momento, é um fator de poder no país.


Não é de nenhuma maneira uma organização terrorista. Me parece que esta tem sido uma criação pérfida da mídia orientada e dirigida pelas elites da Colômbia e dos EUA, que se aproveitam um pouco da conjuntura posterior ao 11 de Setembro de 2001 e sustentam em evidências inexistentes, posto que não há provas sobre isso.


São muito mencionados certos tipos de ações empreendidas pelas FARC para sustentar sua suposta condição de organização terrorista, como, por exemplo, os seqüestros. Este é um dos cavalos de batalha com que se trabalha a idéia de terrorismo das FARC.


Eu posso relatar, por já ter estado em contato e no local, sobre a condição dos prisioneiros de guerra, membros da força pública, que estão atualmente sob a custódia da insurgência. São pessoas que caíram em poder de seu adversário depois de horas e horas de combate, de enfrentar com balas seu adversário. Então, algumas pessoas duraram dez, quinze horas combatendo e caíram em poder de seu adversário. Elas não podem ser chamadas de seqüestradas. São prisioneiros de guerra. Isso não possui outra denominação.


Por outro lado, se acusa a insurgência armada de ser uma organização terrorista porque, supostamente, faz recrutamentos forçados de menores de idade. Isso é absolutamente falso! Eu podia constatar essa situação com meu próprio trabalho como repórter.


Evidentemente existem menores de idade na insurgência. Isso é uma questão inegável e tampouco é algo que diminui a insurgência. Quando as câmeras fotográficas de todo o mundo entraram na zona de Caguán, puderam registrar, aberta e livremente, a presença de menores de idade ali. Porém, a explicação da presença dos menores não tem nada a ver com um recrutamento forçado. Tem a ver com a falta de oportunidades e de futuro que possuem esses garotos, tem a ver com a ausência total do Estado, de uma perspectiva educativa e com a ausência total, em muitos casos, de condições materiais adequadas para seu desenvolvimento. E mais, eu diria que a grande maioria desses menores que militam nas fileiras insurgentes estão ali porque seus pais ou seus familiares foram assassinados, seja pelas forças paramilitares, seja pelas forças do Estado. Eu vi crianças que chegam lá fugindo de episódios brutais de violência. E o que faz a guerrilha? A guerrilha os acolhe. Não vai deixá-los à própria sorte.


Posso dar meu testemunho de que são crianças que não participam diretamente dos confrontos bélicos, que não estão submetidos aos terríveis riscos do combate e que desempenham, quando muito, funções ligadas à logística. Isso é muito irônico. A acusação de terrorismo às FARC quanto ao seu método de recrutamento de menores é uma verdadeira ironia, porque o que se vê é que esses menores são obrigados sim a aprender a ler, a escrever, alfabetizando-se no mundo insurgente.


Então, qual violação aos Direitos Humanos Internacionais está ocorrendo aqui? Ao meu modo, nenhuma.


Enfim, há uma série de acusações que necessitam de evidências, não são mais que uma construção da mídia.


2. Outra acusação que fazem às FARC como parte de uma campanha de desprestigio, que está mais evidente desde o assassinato de Raúl Reyes, de Iván Ríos, as deserções de pessoas que, supostamente, teriam uma alta patente dentro da estrutura militar das FARC como Karina ou a traição de comandantes na famosa Operação Jaque, é de que esta organização revolucionária está desmoralizada, em vias de ser derrotada e que seus combatentes nela permanecem não por princípios revolucionários, e sim para delinqüir. Você que conhece de fato as FARC-EP e que tem estado em acampamentos guerrilheiros, o que pode dizer a respeito?


Bom, é evidente que ao longo dos anos de 2007 e 2008 se desenvolveu uma gigantesca operação militar que vem custando milhares e milhares de milhões de dólares ao governo dos EUA e ao governo da Colômbia. Essa operação faz uso dos mais sofisticados aparatos de tecnologia moderna no terreno bélico. Assim, as FARC receberam uma série de golpes que, em primeiro lugar, comprovam que o Estado colombiano e seu grande aliado norte-americano investem somas monstruosas de dinheiro para poder confrontar seu adversário, desmentindo aquela idéia de que na Colômbia não há conflito armado. Dessa maneira, receberam golpes, é uma guerra e nessa guerra há momentos de desequilíbrio da balança militar.


Recordo, por exemplo, que no ano de 1998 as FARC empreenderam mais ou menos 10 golpes de grandes proporções às forças militares e chegaram a ter 500 soldados e policiais em seu poder como prisioneiros de guerra. A balança militar estava decididamente a favor da insurgência. Entre outras coisas, alguns analistas dizem que foi isso que obrigou o governo do presidente Pastrana a chegar a uma negociação política que ficou conhecida como a negociação de Caguán.


Agora, os golpes sofridos pelas FARC atualmente, indubitavelmente ressentiram a estrutura e, porque não, o ânimo da insurgência. Para uma guerrilha cujo grande mito fundacional, cujo grande emblema, cuja luz era Manuel Marullanda Vélez, já não tê-lo é um grande golpe mental nos guerrilheiros. Os episódios que você menciona, a morte em território equatoriano do Comandante Raúl Reyes, o posterior assassinato de Iván Ríos, etc, geraram também efeitos na estrutura militar porque eram chefes guerrilheiros e sobre seus homens, já que pesaram sobre eles a responsabilidade de substituir os antigos chefes.


Porém quero dizer a você, Dax, que eu, como observador atento dessa realidade, prognostiquei naqueles momentos que a guerrilha ia custar muitíssimo tempo e esforço para recompor-se dos golpes sofridos. E no desenvolvimento de meu trabalho como repórter e de cobertura do conflito colombiano voltei ao mundo insurgente em várias ocasiões depois desses episódios e eu fiquei verdadeiramente surpreso, atônito, diria eu, com a capacidade de recuperação que tem a guerrilha. Isso talvez porque, digamos, sua força interior é muito grande ou porque seus mitos fundacionais e seus propósitos são a prova de tudo ou, talvez, porque haviam previsto tudo.


Eu recordo bem que em minhas viagens para entrevistar o Comandante Raúl Reyes, eu mencionava com pesar ou prestava condolências por estar inteirado do assassinato ou da morte em combate de algum guerrilheiro que conhecíamos e que ele se surpreendia com a minha preocupação. Dizia "se nós assumimos que estamos em uma guerra, o mais normal que poder acontecer é a morte". Eles têm assumido isso desde que tomaram as armas e enfrentaram o Estado. Também sabem que uma das possibilidades, inclusive uma das maiores possibilidades de sua vida, é a morte. Então, eu não sei na realidade quais são os significados ou a soma dos significados que existe hoje em dia. Depois de semelhantes golpes, as FARC estão novamente com grande disposição combativa, talvez até maior que a de alguns anos, e que com uma imensa capacidade de recuperação.


Eu acredito que o discurso deste oficial do alto comando militar e do próprio presidente Uribe no sentido de que as FARC estão a ponto de serem exterminadas, a poucas horas de sua dissolução total, não é mais que uma aspiração deles, um sonho.


Porém, eu digo com todas as letras, e não digo como uma frase feita, eu digo como uma realidade histórica, possível de comprovar pela ciência, pela história, pela política que as FARC são invencíveis! São invencíveis!


A outra discussão é sobre as possibilidades ou a capacidade de chegar ao poder. É uma outra discussão. Porém, não vão aniquilar as FARC. E como não a aniquilarão, isto nos leva a concluir, se somos seres humanos sensatos, pensamos num país, no futuro da sociedade colombiana e no âmbito latino-americano, que a única saída é uma negociação política, é a via do diálogo, é a assinatura de um grande pacto de paz que devolva aos colombianos algo que nos é de muito apreço e que perdemos durante cinco décadas, a paz, e que nos permita ver o futuro de outra maneira, não com esta sensação permanente de belicismo e agressividade a qual estamos acostumados no governo Uribe.


3. Muito poucas pessoas podem ter acesso a uma informação objetiva, verídica do que realmente constitui as FARC-EP. Esta situação permite que a propaganda do imperialismo e dos regimes narco-paramilitares colombianos se dissemine e convença muita gente, internalizando a qualificação das FARC como organização terrorista. Como comunicador social, que elementos você considera que caracterizam essa propaganda e como enfrentar essa propaganda para que as pessoas compreendam melhor o que são as FARC?


Importantíssima essa pergunta, Dax. Porque creio que aí está o nó que temos que desatar. Eu acredito que a sociedade colombiana está aterrorizada. O grande trabalho da mídia é conduzido pelas mais altas esferas do poder, sobretudo o poder econômico, é fazer a sociedade colombiana acreditar que existe um inimigo a postos, que estamos em meio aos piores perigos e que há que cerrar fileiras e apoiar a idéia de que a única forma de acabar com esse monstro que supostamente existe, pronto para devorar a sociedade colombiana, é com todos os fogos, com todos os ferros.


Repare que a construção da ameaça terrorista das FARC, que assim é denominada pelo presidente Uribe, está agregada a outro grande demônio que tem aterrorizado e paralisado a sociedade colombiana. Há movimentos de resistência, há gente na rua e na insurgência armada, porém, se você observa o conjunto da sociedade colombiana, verá que ela está absolutamente paralisada e isso facilita a construção de outro demônio que é ninguém menos que o presidente Chávez. Falta pouco para que nas rotinas familiares da Colômbia, aquela ameaça feitas às crianças que não querem comer, de trazer o bicho papão, se converta em se não comerem, trarão Chávez. É impressionante o nível de macartização, estigmatização e caricaturização que está sendo feito do presidente da Venezuela pelos meios de comunicação.


Então, nessa atmosfera de sociedade paralisada, que repito ser fruto de uma grande construção midiática e com isso respondo a sua primeira pergunta, eu vejo que não nos resta outro caminho que o de estimular e dar todo apoio, impulso, esforço que seja possível àquelas expressões comunicativas que saem do discurso oficial.


Conversávamos ontem, na abertura do encontro continental de jornalistas, sobre a quantidade de ferramentas que estão ao nosso alcance agora, e também falávamos da afortunada aparição da Telesur no espectro eletromagnético de nosso continente. E falamos até das paredes. Enfim, eu penso, Dax, que não nos resta outra saída se não nos engajar numa guerra midiática, às armas midiáticas, com todos os ferros, com todas as ferramentas ao nosso alcance!


Temos que contra-atacar de mil maneiras este ataque tão terrível do qual estamos sendo vítimas. Não como revolucionários, mas as sociedades como um todo, a sociedade colombiana no nosso caso, e a sociedade latino-americana que parece adormecer perante o exitoso projeto comunicacional impulsionado pelas elites.


Isso nós também temos que aprender. Eu não creio que vamos apelar para as imundices que eles apelam e para as manipulações. Porém, do ponto de vista técnico, do ponto de vista estético, da qualidade, temos que aprender a utilizar muitos desses recursos porque, repito, se algo que temos que reconhecer é que sua tarefa foi objetiva e eficaz. É uma porcaria, um atropelo, é uma coisa maquiavélica, mas eficaz. Então, temos que redobrar os esforços com grande decisão, para ver se conseguimos reverter ou nivelar um pouco a situação.


4. Parte dos ataques contra as FARC-EP constituem a criminalização de todas e todos aqueles que, de certa maneira, manifestam apoio à insurgência colombiana. Já o qualificaram de porta-voz dos "terroristas". Isto faz, inclusive, com que as próprias organizações de esquerda e os intelectuais que vem expressando certo respaldo às FARC-EP, tenham medo de fazê-lo com maior empenho, mantendo-se em silêncio, enquanto o imperialismo e a oligarquia vociferam o que bem entendem. O que fazer para enfrentar esta campanha de amedrontamento que conduz ao silenciamento?


Eu tenho uma teoria sobre isso. O que se busca com essa tarefa de criminalizar, estigmatizar e pôr uma etiqueta, um "INRI" nas pessoas é basicamente amedrontar, para que nos escondamos, fujamos. Por exemplo, eu que estou na Colômbia fugiria para o Equador, para a Venezuela, para a Europa. Isso é o que querem e por isso colocam em perigo a vida de muitas pessoas e reproduzem estas qualificações absurdas e sem sustento que fazem sobre essas pessoas, organizações, equipes de trabalho.


O presidente Uribe disse numa entrevista coletiva que fulano, fulano e fulano, referindo-se a três jornalistas, entre eles eu, "são porta-vozes da insurgência e publicitários do terrorismo". Na Colômbia, há mais de dez loucos que interpretam isso como uma ordem para assassinar uma a uma essas pessoas citadas pelo presidente. Então, é isso que acontece. As opções, repito, são duas; me escondo, passo para a clandestinidade e começo a fazer coisas que eu não conheço e não sei fazer e farei mal ou amplio meu cenário de ação e sigo fazendo meu trabalho e o faço com mais empenho, me coloco mais visível e com mais visibilidade, de certa maneira, me protejo.


E bom, tenho que apelar também para as organizações internacionais que velam por esses temas de direitos humanos, as organizações de jornalistas de todo o mundo, aos pronunciamentos de personalidades internacionais. Isso de alguma maneira limita a capacidade de agressão das pessoas contra as quais decidimos enfrentar.


Eu me situo ao lado dos que buscam crescer perante esses ataques e censuro, ainda que entenda e aceite em muitos casos, já que não parece ser o caminho mais adequado, o exílio, o desaparecer de cena, o calar-se.


5. Outra acusação contra as FARC-EP é a de que esta organização mantém seqüestrados um grande número de pessoas em campos de prisioneiros na selva, onde os mesmos são maltratados e até mesmo torturados. Você que teve a oportunidade de estar nestes lugares, pode contar-nos qual é a realidade sobre os cárceres das FARC-EP?


Este assunto sobre a suposta crueldade no tratamento aos prisioneiros de guerra é outra construção da mídia.


Vejamos.


Evidentemente as imagens do cativeiro, eu gravei várias delas, aliás, acredito que oitenta por cento das imagens que saem do cativeiro são minhas já que eu estive ali algumas vezes, são bastante fortes. Estamos falando de pessoas que estão num cativeiro localizado na selva fechada, em condições atmosféricas difíceis, em condições de salubridade complicadas, com dificuldades de alimentação muitas vezes, em épocas como verão aumentam as dificuldades de conseguir água, são lugares onde entra muito pouco sol, estão no meio da mata. Repito que, do ponto de vista do impacto visual, é muito fácil usar essas imagens para o fim que se deseja.


Eu me recordo, por exemplo, quando eu exibi algumas imagens no canal do Caracol onde eu trabalhava, dos 500 soldados que diziam terem estado presos pela guerrilha. Quando apresentei essas imagens, apresentei também um documentário e o canal me censurou, não deixou ir ao ar, porém ficou com as minhas imagens. Eu denunciei a censura e eles me demitiram. Porém, os filhos da mãe ficaram com as minha imagens e começaram a divulgá-las, colocando na metade da tela imagens dos campos de concentração nazifascista na Alemanha da Segunda Guerra Mundial e na outra metade da tela as minhas imagens, fazendo uma comparação, uma analogia entre os campos de concentração nazista e os lugares onde estive. Nada a ver! Era uma utilização, uma manipulação. Eu processei a Caracol por isso, porque entre outras coisas, estavam colocando minha vida em risco, aparentando que eu estivera ido a esses lugares para tal propósito.


Pois bem, vou falar um pouquinho das condições do cativeiro. A figura me causa sentimentos conflitantes. Eu entendo que a guerra é uma confrontação e que são pessoas que caem em meio a conflagração nesta situação. Porém, é uma situação extrema que é muito fácil de manipular e de converter em uma má imagem para a insurgência.


Advirto que são as mesmas condições nas quais estão os guerrilheiros. As pessoas que estão no cativeiro tomam café-da-manhã, almoçam e jantam o mesmo que os guerrilheiros. São pessoas que recebem assistência médica, inclusive odontológica. Do ponto de vista da rotina, não recebem maus tratos, não servem de exemplo para ensinamentos por parte de seus captores e até tenho percebido certas situações de familiaridade, de camaradagem e de amizade, de alguma forma, entre uns e outros.


Qual é a resposta que se dá a um preso que se insurreta num cárcere qualquer do mundo? É o castigo e castigos tenebrosos. Calabouço, isolamento, etc.


O que acontece a um preso em qualquer cárcere do mundo que tenta fugir? Existe uma ordem que é impedir a fuga ou a intenção de fuga, o que ocorrerá com graves conseqüências para sua vida.


O mesmo acontece lá, porque a insurgência trata de prisioneiros. Então, se um grupo de prisioneiros tenta fugir, no dia seguinte todos amanhecem presos com cadeados. Se um grupo de presos ou um preso faz coisas que possam colocar em perigo a segurança dos demais e também da insurgência e dos guerrilheiros que os guardam, recebem um castigo. Claro, que isso num relato, na utilização da mídia é transformado em algo absurdamente cruel e inumano.


Cabe advertir que é muito doloroso quando me encontro nessas situações. Creio que se tem explorado muito o tema com o intuito, repito, de dar uma aparência de crueldade, a qual estou seguro que não existe na insurgência. E se existe, são fatos isolados, fatos que são puníveis por estatuto e regulamentos das FARC.


6. Para desprestigiar as FARC-EP, a campanha propagandística do imperialismo e da oligarquia colombiana assinala permanentemente que nas fileiras desta organização se maltrata as mulheres. Você teve a oportunidade de conhecer a Lucero, a "belíssima Lucero", a companheira de Simón Trinidad. Conte-nos algo sobre essa excepcional mulher.


(Jorge Enrique Botero se comove ao escutar o nome de Lucero. Seus olhos se enchem de lágrimas)


Homem, Dax. Escutar o nome de Lucero é emocionante. É uma emoção grande, íntima, interna.


Lucero é uma típica representante das jovens colombianas que chegam à insurgência por via política. Ela é uma garota que em sua época de estudante se forma politicamente, ingressa nas fileiras da Juventude Comunista, atua na legalidade e vê cair ao seu redor todos os companheiros de luta que não desfechavam tiros, mas lutavam na esfera legal da política.


Lucero é proveniente de uma pequena população da Costa Atlântica colombiana. Ingressa à União Patriótica e assiste ao assassinato a tiros de todos os seus dirigentes. Tem a sorte de encontrar com uma frente guerrilheira comandada por Simón Trinidad e ante a eventualidade de morrer ou abandonar a luta, prefere optar por seguir seus ideais.


Maus tratos? Jamais observei. É muito possível. Estamos falando de homens e mulheres que possuem sentimentos, inclusive, inveja. É possível que tenham ocorrido episódios meio dramáticos, inclusive violentos, entre paredes, assim como atitudes machistas, sem dúvida.


Porém, por exemplo, um episódio de violência sexual contra uma guerrilheira é o menos provável que eu possa imaginar. Um episódio de violência sexual contra uma guerrilheira é castigado com pena máxima ou se um guerrilheiro se sobrepõe ou atua de maneira agressiva contra mulheres da população civil, também é objeto de fortíssimos castigos.


Do ponto de vista prático, da rotina diária da guerrilha, o conceito e a prática do machismo não existe. Eu creio que um dos lugares onde as mulheres são mais realizadas e respeitadas em sua totalidade é no mundo da insurgência.


Acho muita graça quando escuto falácias sobre os maus tratos às mulheres, sobre a transformação de mulheres em objeto sexual e sobre uma espécie de prova na qual, para ingressar na organização, as mulheres têm de passar aos braços dos comandantes. O que se objetiva com essas afirmações mentirosas é desestimular o ingresso de garotas à insurgência e tenta-se criar a sensação de que lá é um verdadeiro inferno machista, no qual a mulher é apenas um objeto sexual para satisfazer os instintos dos demais. Porém, creio que as guerrilheiras e os guerrilheiros morrem de rir e de raiva ao ouvir tais absurdos, pois lá é o local onde as mulheres são mais respeitadas.


Obrigado, Jorge. Todo o meu carinho, respeito e admiração a você, por sua convicção revolucionária e sua atividade profissional como jornalista, mantendo-se ativo nos movimentos sociais e não apenas no cenário das indústrias da mídia.


Obrigado a você.


Dezembro de 2009.


http://www.resumenlatinoamericano.org


Tradução: Maria Fernanda M. Scelza