segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Brasileiros, "go home!" - Por: Sergio Kalili e Sandra Quintela

O Brasil deve renovar o comando da missão de paz no Haiti? NÃO
NESTE MÊS, a jovem mãe de 20 e poucos anos Esterlin Marie Carmelle, solitária em seu cubículo em Cité Soleil, uma das maiores favelas de Porto Príncipe, capital do Haiti, deveria se lembrar de Jean-Jacques Dessalines, um ex-escravo que liderou, em outubro de 1802, a guerra para a expulsão dos colonizadores franceses da ilha. Dessaline, logo depois, em 1804, proclamou a independência do país.
O Haiti se tornou assim a primeira nação latino-americana livre, a primeira do mundo liderada por negros (no período colonial) e a única a ganhar a independência por meio de uma rebelião de escravos. Mas Carmelle e seus vizinhos hoje não pensam em comemorar a luta de Dessaline. Neste mês, mais do que nunca, ela tem em mente a presença incômoda de soldados brasileiros da Minustah, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti. No dia 15, contra a sua vontade, o Conselho de Segurança da ONU deve renovar o mandato de permanência da Minustah em seu país. Carmelle tem a marca dessa missão de estabilização sob comando militar brasileiro. Durante uma das muitas operações do Exército em apoio à polícia violenta do Haiti em Cité Soleil, Carmelle perdeu o filho de dois anos, atingido na cabeça dentro de casa, enquanto dormia abraçado com ela.

Mais de 20 países participam da missão, entre eles, Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai. Desde o início, em 2004, as tropas são acusadas de cometer massacres, assassinatos, estupros e outras violações, sobretudo contra a população mais pobre. Em novembro de 2007, o Sri Lanka deixou a missão depois que 108 de seus soldados foram acusados de abusar sexualmente de mulheres e crianças.

Ao apoiar as ações da polícia e do governo, integrantes da Minustah acabam por facilitar a repressão a opositores, líderes comunitários e movimentos sociais. A bala que matou o filho de Carmelle talvez tivesse outro endereço. Nos bairros pobres e miseráveis, vivem ou viviam muitos dos seguidores do ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide, expulso do país em 2004, após outra intervenção americana. Gerhard Latortue, representante dos militares, de ultradireita, assumiu o poder com apoio americano.
Tropas da ONU substituíram os marines no país, após a aprovação da Minustah pelo Conselho de Segurança. Nos primeiros anos da missão, a violência foi intensa. Em fins de agosto de 2004, duas pessoas foram mortas próximas a Cité Soleil. Em 30 de setembro, dez manifestantes foram executados. Na madrugada de 6 de julho de 2005, 300 soldados, sobretudo brasileiros, mataram mais de 60 haitianos nos bairros pobres de Cité Soleil e Bois Neuf. Em 2006, apesar da repressão e das fraudes, o candidato apoiado por Aristide, René Préval, elegeu-se presidente. Mas, com a Minustah, Préval acabou com poderes limitados.
Cinco anos de Minustah, e o Haiti continua o país mais pobre do Ocidente. Ocupa o 153º lugar no IDH da ONU, com 80% da população abaixo da linha da pobreza e 80% do povo desempregado. Poucos são os programas sociais e os recursos destinados ao povo. Do orçamento da missão, 85% vai para militares e a polícia civil.
A Minustah garante a estabilidade para a implantação de projetos econômicos que agradam mais aos países vizinhos e à elite doméstica do que ao povo. No ano em que foi eleito, Préval iniciou privatizações de portos, aeroportos, dos sistemas de telefone e saúde. Dezoito zonas de livre comércio surgiram para transnacionais, como as têxteis americanas.
Além da miséria, a violência continua. Manifestações são reprimidas e operações violentas se repetem em bairros pobres. Recentemente, soldados da Minustah foram acusados de matar mais um jovem durante uma manifestação.
Por tudo isso, haitianos tem protestado diante do quartel general da ONU, em Porto Príncipe, para pedir aos membros da missão que voltem para casa.
SERGIO KALILI, jornalista e documentarista, é pesquisador da ONG Justiça Global.
SANDRA QUINTELA, economista, é membro da coordenação continental da Rede Jubileu Sul.

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