terça-feira, 31 de maio de 2011

SOBRE OS ACONTECIMENTOS EM ESPANHA

2011-05-24 07:00

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Os acontecimentos da Espanha, pelo seu significado, estão a polarizar

a atenção da Europa e de milhões de pessoas noutros continentes. Em

Washington, Berlim, Paris e Londres, o acampamento da Puerta del Sol,

inicialmente encarado como iniciativa folclórica de jovens pequeno

burgueses frustrados, gera agora preocupação.

Quando o chamado Movimento M-15 alastrou a dezenas de cidades do país

e nas capitais europeias centenas de pessoas se manifestaram frente às

embaixadas espanholas, a indiferença evoluiu para um sentimento de

temor.

Porquê?

O protesto espanhol insere-se na crise global de civilização que a

humanidade enfrenta, cujas raízes arrancam da crise estrutural de um

sistema de opressão: o capitalismo.

Seria um erro concluir que os jovens que criaram o Movimento

«Democracia Real Ya » são revolucionários e o seu objectivo é a

destruição do regime. O M-15 atraiu gente muito diferente. Alguns nem

sequer rejeitam a obsoleta e corrupta monarquia bourbonica. Mas

rapidamente a contestação popular excedeu as previsões. O Movimento,

após a repressão do primeiro dia, foi olhado quase com benevolência

pelo PP e pelo PSOE os dois grandes partidos da burguesia. Mas, ao

assumir proporções torrenciais, o protesto adquiriu os contornos de

uma condenação do regime na qual as massas emergiam como sujeito

histórico.

Na Puerta del Sol começaram a ouvir-se brados inesperados: «No al FMI

»; «No a la farsa electoral»; «PSOE y PP, la misma gente!»; «Noa las

guerras de los EEUU!». Soou até a palavra «Revolução!»

Daí o medo.

Os jovens de Madrid sabem o que não querem, mas a grande maioria não

tem uma ideia minimamente clara sobre o que fazer e como actuar. As

reivindicações aprovadas a 20 de Maio, na Assembleia do acampamento,

são moderadas, algumas ingénuas. Espontaneista, o M-15 não acampa no

centro de Madrid em função de uma estratégia de Poder.

Quando aquilo principiou o que unia a multidão heterogénea de jovens

pouco mais era que a recusa da caricatura de democracia. Terá sido uma

surpresa para o pequeno núcleo inicial a adesão maciça de adultos, de

desempregados, de reformados. Foi ainda numa atmosfera de confusão que

surgiram as primeiras lideranças embrionarias, os porta-vozes do

acampamento.

Jovens entrevistados por media internacionais manifestaram espanto ao

tomar conhecimento da repercussão internacional da iniciativa e das

concentrações de solidariedade em cidades espanholas e europeias.

DE TUNIS A MADRID

O protesto dos «indignados» de Espanha foi obviamente inspirado pelo

modelo da Tunísia e do Egipto. Na época da comunicação instantânea, as

redes sociais permitiram que em tempo rapidíssimo os apelos à

concentração popular na Puerta del Sol fossem atendidos por milhares

de jovens. A praça madrilena foi a Tahrir egípcia.

Tal como ocorrera no Norte de África, a exigência de «democracia»

funcionou como motor da mobilização popular.

Mas enquanto nas rebeliões contra Ben Ali e Hosni Mubarak as massas

reivindicavam liberdades, eleições livres, um parlamento tradicional,

destruição de aparelhos repressivos, o fim de ditaduras ferozes e a

sua substituição por regimes representativos similares aos da União

Europeia, em Espanha a «democracia real ya» reclamada pelos

«indignados» partia dialecticamente da recusa do figurino pelo qual se

batiam os africanos.

O que para os árabes era ambição e sonho aparece hoje a muitos dos

acampados da Puerta del Sol como caricatura da democracia, rosto de um

regime cuja prática nega os valores e princípios que invoca, que

concentra a riqueza numa ínfima minoria e promove o desemprego, amplia

a desigualdade social.

Enquanto a burguesia tunisina e egípcia se solidarizava com os

rebeldes que se manifestavam contra Ali e Mubarak e o imperialismo

rompia com os seus aliados da véspera, a burguesia espanhola, os

partidos tradicionais e os poderosos da União Europeia condenavam os

«indignados» peninsulares, identificando neles arruaceiros de um novo

tipo.

Merece reflexão a dualidade antagónica da posição assumida pelo

imperialismo americano. Na Casa Branca, o presidente Obama compreendeu

que as reivindicações dos rebeldes da Tunísia e do Egipto não colidiam

com a sua estratégia para a Região e, agindo com rapidez e eficácia,

estimulou e aplaudiu nesses países a instalação de Governos de

transição ditos democráticos, sob a tutela de personalidades militares

e civis que, com poucas excepções, tinham servido as ditaduras

eliminadas. Na Líbia bombardeia Tripoli ; no Golfo pede à Arábia

Saudita que afogue em sangue rebeliões incomodas como a do Bahrein,

sede da V Esquadra da US Navy.

O imperialismo encara, naturalmente, com desconfiança e apreensão o

alastramento do protesto inorgânico dos jovens «indignados». Obama e o

Pentágono interrogam-se sobre as consequências imprevisíveis de um

movimento que condena com dureza o envolvimento da Espanha nas guerras

asiáticas dos EUA.

ADESÕES INTERNACIONAIS

A direita arrasou o PSOE nas eleições municipais de domingo. Os

acampados da Puerta del Sol reagiram com indiferença aparente aos

resultados. «Eles não nos representam», declararam porta vozes do

M-15, sublinhando que na engrenagem do poder, o PSOE e o PP, embora

com discursos, histórias , percursos e bases sociais diferentes,

praticam no governo politicas neoliberais muito semelhantes, e

politicas externas caracterizadas pela submissão às exigências dos EUA

e de Bruxelas.

Significativamente, o espaço e o tempo que os media espanhóis

dedicaram durante a última semana aos «indignados» diminuíram

drasticamente desde sábado. O tema quase desapareceu das primeiras

páginas dos grandes jornais e do programa dos canais de televisão. A

vitória do PP e o avanço das Autonomias monopolizaram a atenção de

políticos, analistas e jornalistas do sistema.

Oposta é a atitude assumida pela maioria dos intelectuais

progressistas. Na Espanha e também na América Latina, personalidades

de prestigio, em artigos e entrevistas publicados em revistas Web de

informação alternativa como Resumen Latino Americano e Rebelión e

outras, expressam a sua solidariedade com os jovens do M-15 e

reflectem sobre o significado e as consequências da contestação.

Cito alguns exemplos expressivos.

O filósofo e escritor marxista Santiago Alba Rico, num artigo

intitulado «La Qasba en Madrid» sublinhou que a Espanha «não é uma

democracia». E acrescenta, realista: «Não haverá uma revolução em

Espanha. Mas uma surpresa, um milagre, uma tormenta, uma consciência

nas trevas, um gesto de dignidade na apatia, um acto de coragem na

anuência, uma afirmação anti-publicitaria de juventude, um grito

colectivo de democracia na Europa, não é já um pouco uma revolução?»

Carlos Taibo, professor da Universidade Autónoma de Madrid, esteve na

Puerta del Sol levando solidariedade, e dirigindo-se aos acampados

disse ao saudá-los: «Os que aqui estamos somos, obviamente, pessoas

muito diferentes. Temos na cabeça projectos e ideais diferentes. Mas

conseguimos, apesar disso, chegar a acordo quanto a um punhado de

ideias básicas». E, parafraseando Santiago Alba Rico, afirmou: «Aquilo

a que em Espanha chamam democracia, não o é!».

O escritor italiano Carlo Frabetti escreveu: «Desde o protesto dos

Goya de 2003 que não se conseguira um aproveitamento tão eficaz de

contestaçao interna do sistema e a sua expressão cultural do

espectáculo».

Atilio Borón, um sociólogo marxista argentino de prestígio

internacional, dedica aos jovens acampados um artigo entusiástico

intitulado «Os indignados e a Comuna de Paris». Lembra que aquilo que

a democracia de Moncloa propõe para enfrentar a «crise é o despotismo

do mercado, irreconciliável com qualquer projecto democrático». E,

cedendo a um impulso romântico, conclui o artigo com estas palavras:

«Se persistirem (os indignados) na sua luta poderão derrotar a

prepotência do capital e, eventualmente, iniciar uma nova etapa na

história não só da Espanha, mas da Europa».

Angeles Maestro, a destacada dirigente de «Corriente Roja», da

Espanha, mais realista, salienta que os acampamentos em dezenas de

cidades espanholas «têm um conteúdo anticapitalista» e neles ondula

«uma multidão de bandeiras republicanas». Enfatiza o descrédito da

montagem eleitoral e afirma que «As mobilizações maciças que se

iniciaram em numerosas cidades do estado espanhol a 15 de Maio e que

tiveram continuidade em acampamentos, assembleias e convocatórias para

novas manifestações expressam o alto nível de indignação e raiva de

uma juventude que não tem qualquer esperança de chegar a ter os

direitos básicos que a Constituição pomposamente proclama: direito ao

trabalho, à habitação, à educação e saúde publica de qualidade, a uma

pensão digna, etc.».

Quanto ao futuro do Movimento, adverte como revolucionaria experiente:

«Nos processos sociais não há atalhos. Se é um facto que a faúlha da

espontaneidade está sempre presente e serve para desencadear as

mobilizaçoes, somente o avanço da organização é a medida da acumulação

de forças, e sem acumulação de forças as lutas leva-as o vento.»

AMANHÃ INCERTO

Esperanza Aguirre, a reeleita alcaide de Madrid, não esconde a sua

hostilidade aos acampados. Se dela dependesse, declarou, ordenaria à

Policia que expulsasse da Puerta del Sol os acampados. A repressão

inicial foi esclarecedora da sua posição. Mas carece de poderes para

recorrer à força.

Qual o desfecho do protesto dos «indignados»?

Por ora é imprevisivel.

Vai persistir, transformando-se em desafio ao Poder?

Uma Assembleia, improvisada e tumultuosa como as anteriores, decidiu

manter o acampamento até ao próximo domingo. Durante a semana

os activistas irão aos bairros. Depois se verá.

Em Barcelona e noutras cidades, as concentrações de protesto também

não se dissolveram, mas os próprios organizadores admitem que o número

de participantes diminua nos próximos dias.

Repito: os jovens «indignados» sentem dificuldade em definir um rumo

para a luta que iniciaram. A maioria talvez não tenha consciência da

complexidade do desafio lançado ao Poder.

Volto a citar Angeles Maestro: «O processo de confluência múltipla em

torno a um programa comum somente poderá abrir caminho se criar raízes

nas lutas operárias e populares. Por outras palavras, se a construção

do referente politico beber a seiva na luta de classes e demonstrar a

sua utilidade para abordar um longo processo de acumulação de forças».

A consciência demonstrada pelos «indignados» de Madrid de que a

«democracia representativa» é uma ficção no Estado Espanhol deve porém

ser saudada como acontecimento importante no âmbito das lutas de massa

europeias e não ignorada, subestimada ou mesmo criticada com

sobranceria em atitudes irresponsáveis por alguns dirigentes de

partidos de esquerda da União Europeia.

Não compartilho a euforia prematura de Atilio Boron, mas julgo

oportuno reafirmar que a Espanha não é excepção na Europa. Não há

democracia autêntica sem participação decisiva do povo. Na União

Europeia um sistema mediático perverso e desinformador esconde a

realidade. Os regimes existentes nos 27 diferenciam-se muito. Mas

existe um denominador comum: a ausência de uma democracia autêntica.

Neste início do século XXI, no contexto de uma gravíssima crise

mundial de civilização, o capitalismo, em fase senil, cola o rótulo da

democracia representativa a ditaduras da burguesia de fachada

democrática.

Vila Nova de Gaia, 23 de Maio de 2011.




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