2011-05-24 07:00
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Os acontecimentos da Espanha, pelo seu significado, estão a polarizar
a atenção da Europa e de milhões de pessoas noutros continentes. Em
Washington, Berlim, Paris e Londres, o acampamento da Puerta del Sol,
inicialmente encarado como iniciativa folclórica de jovens pequeno
burgueses frustrados, gera agora preocupação.
Quando o chamado Movimento M-15 alastrou a dezenas de cidades do país
e nas capitais europeias centenas de pessoas se manifestaram frente às
embaixadas espanholas, a indiferença evoluiu para um sentimento de
temor.
Porquê?
O protesto espanhol insere-se na crise global de civilização que a
humanidade enfrenta, cujas raízes arrancam da crise estrutural de um
sistema de opressão: o capitalismo.
Seria um erro concluir que os jovens que criaram o Movimento
«Democracia Real Ya » são revolucionários e o seu objectivo é a
destruição do regime. O M-15 atraiu gente muito diferente. Alguns nem
sequer rejeitam a obsoleta e corrupta monarquia bourbonica. Mas
rapidamente a contestação popular excedeu as previsões. O Movimento,
após a repressão do primeiro dia, foi olhado quase com benevolência
pelo PP e pelo PSOE os dois grandes partidos da burguesia. Mas, ao
assumir proporções torrenciais, o protesto adquiriu os contornos de
uma condenação do regime na qual as massas emergiam como sujeito
histórico.
Na Puerta del Sol começaram a ouvir-se brados inesperados: «No al FMI
»; «No a la farsa electoral»; «PSOE y PP, la misma gente!»; «Noa las
guerras de los EEUU!». Soou até a palavra «Revolução!»
Daí o medo.
Os jovens de Madrid sabem o que não querem, mas a grande maioria não
tem uma ideia minimamente clara sobre o que fazer e como actuar. As
reivindicações aprovadas a 20 de Maio, na Assembleia do acampamento,
são moderadas, algumas ingénuas. Espontaneista, o M-15 não acampa no
centro de Madrid em função de uma estratégia de Poder.
Quando aquilo principiou o que unia a multidão heterogénea de jovens
pouco mais era que a recusa da caricatura de democracia. Terá sido uma
surpresa para o pequeno núcleo inicial a adesão maciça de adultos, de
desempregados, de reformados. Foi ainda numa atmosfera de confusão que
surgiram as primeiras lideranças embrionarias, os porta-vozes do
acampamento.
Jovens entrevistados por media internacionais manifestaram espanto ao
tomar conhecimento da repercussão internacional da iniciativa e das
concentrações de solidariedade em cidades espanholas e europeias.
DE TUNIS A MADRID
O protesto dos «indignados» de Espanha foi obviamente inspirado pelo
modelo da Tunísia e do Egipto. Na época da comunicação instantânea, as
redes sociais permitiram que em tempo rapidíssimo os apelos à
concentração popular na Puerta del Sol fossem atendidos por milhares
de jovens. A praça madrilena foi a Tahrir egípcia.
Tal como ocorrera no Norte de África, a exigência de «democracia»
funcionou como motor da mobilização popular.
Mas enquanto nas rebeliões contra Ben Ali e Hosni Mubarak as massas
reivindicavam liberdades, eleições livres, um parlamento tradicional,
destruição de aparelhos repressivos, o fim de ditaduras ferozes e a
sua substituição por regimes representativos similares aos da União
Europeia, em Espanha a «democracia real ya» reclamada pelos
«indignados» partia dialecticamente da recusa do figurino pelo qual se
batiam os africanos.
O que para os árabes era ambição e sonho aparece hoje a muitos dos
acampados da Puerta del Sol como caricatura da democracia, rosto de um
regime cuja prática nega os valores e princípios que invoca, que
concentra a riqueza numa ínfima minoria e promove o desemprego, amplia
a desigualdade social.
Enquanto a burguesia tunisina e egípcia se solidarizava com os
rebeldes que se manifestavam contra Ali e Mubarak e o imperialismo
rompia com os seus aliados da véspera, a burguesia espanhola, os
partidos tradicionais e os poderosos da União Europeia condenavam os
«indignados» peninsulares, identificando neles arruaceiros de um novo
tipo.
Merece reflexão a dualidade antagónica da posição assumida pelo
imperialismo americano. Na Casa Branca, o presidente Obama compreendeu
que as reivindicações dos rebeldes da Tunísia e do Egipto não colidiam
com a sua estratégia para a Região e, agindo com rapidez e eficácia,
estimulou e aplaudiu nesses países a instalação de Governos de
transição ditos democráticos, sob a tutela de personalidades militares
e civis que, com poucas excepções, tinham servido as ditaduras
eliminadas. Na Líbia bombardeia Tripoli ; no Golfo pede à Arábia
Saudita que afogue em sangue rebeliões incomodas como a do Bahrein,
sede da V Esquadra da US Navy.
O imperialismo encara, naturalmente, com desconfiança e apreensão o
alastramento do protesto inorgânico dos jovens «indignados». Obama e o
Pentágono interrogam-se sobre as consequências imprevisíveis de um
movimento que condena com dureza o envolvimento da Espanha nas guerras
asiáticas dos EUA.
ADESÕES INTERNACIONAIS
A direita arrasou o PSOE nas eleições municipais de domingo. Os
acampados da Puerta del Sol reagiram com indiferença aparente aos
resultados. «Eles não nos representam», declararam porta vozes do
M-15, sublinhando que na engrenagem do poder, o PSOE e o PP, embora
com discursos, histórias , percursos e bases sociais diferentes,
praticam no governo politicas neoliberais muito semelhantes, e
politicas externas caracterizadas pela submissão às exigências dos EUA
e de Bruxelas.
Significativamente, o espaço e o tempo que os media espanhóis
dedicaram durante a última semana aos «indignados» diminuíram
drasticamente desde sábado. O tema quase desapareceu das primeiras
páginas dos grandes jornais e do programa dos canais de televisão. A
vitória do PP e o avanço das Autonomias monopolizaram a atenção de
políticos, analistas e jornalistas do sistema.
Oposta é a atitude assumida pela maioria dos intelectuais
progressistas. Na Espanha e também na América Latina, personalidades
de prestigio, em artigos e entrevistas publicados em revistas Web de
informação alternativa como Resumen Latino Americano e Rebelión e
outras, expressam a sua solidariedade com os jovens do M-15 e
reflectem sobre o significado e as consequências da contestação.
Cito alguns exemplos expressivos.
O filósofo e escritor marxista Santiago Alba Rico, num artigo
intitulado «La Qasba en Madrid» sublinhou que a Espanha «não é uma
democracia». E acrescenta, realista: «Não haverá uma revolução em
Espanha. Mas uma surpresa, um milagre, uma tormenta, uma consciência
nas trevas, um gesto de dignidade na apatia, um acto de coragem na
anuência, uma afirmação anti-publicitaria de juventude, um grito
colectivo de democracia na Europa, não é já um pouco uma revolução?»
Carlos Taibo, professor da Universidade Autónoma de Madrid, esteve na
Puerta del Sol levando solidariedade, e dirigindo-se aos acampados
disse ao saudá-los: «Os que aqui estamos somos, obviamente, pessoas
muito diferentes. Temos na cabeça projectos e ideais diferentes. Mas
conseguimos, apesar disso, chegar a acordo quanto a um punhado de
ideias básicas». E, parafraseando Santiago Alba Rico, afirmou: «Aquilo
a que em Espanha chamam democracia, não o é!».
O escritor italiano Carlo Frabetti escreveu: «Desde o protesto dos
Goya de 2003 que não se conseguira um aproveitamento tão eficaz de
contestaçao interna do sistema e a sua expressão cultural do
espectáculo».
Atilio Borón, um sociólogo marxista argentino de prestígio
internacional, dedica aos jovens acampados um artigo entusiástico
intitulado «Os indignados e a Comuna de Paris». Lembra que aquilo que
a democracia de Moncloa propõe para enfrentar a «crise é o despotismo
do mercado, irreconciliável com qualquer projecto democrático». E,
cedendo a um impulso romântico, conclui o artigo com estas palavras:
«Se persistirem (os indignados) na sua luta poderão derrotar a
prepotência do capital e, eventualmente, iniciar uma nova etapa na
história não só da Espanha, mas da Europa».
Angeles Maestro, a destacada dirigente de «Corriente Roja», da
Espanha, mais realista, salienta que os acampamentos em dezenas de
cidades espanholas «têm um conteúdo anticapitalista» e neles ondula
«uma multidão de bandeiras republicanas». Enfatiza o descrédito da
montagem eleitoral e afirma que «As mobilizações maciças que se
iniciaram em numerosas cidades do estado espanhol a 15 de Maio e que
tiveram continuidade em acampamentos, assembleias e convocatórias para
novas manifestações expressam o alto nível de indignação e raiva de
uma juventude que não tem qualquer esperança de chegar a ter os
direitos básicos que a Constituição pomposamente proclama: direito ao
trabalho, à habitação, à educação e saúde publica de qualidade, a uma
pensão digna, etc.».
Quanto ao futuro do Movimento, adverte como revolucionaria experiente:
«Nos processos sociais não há atalhos. Se é um facto que a faúlha da
espontaneidade está sempre presente e serve para desencadear as
mobilizaçoes, somente o avanço da organização é a medida da acumulação
de forças, e sem acumulação de forças as lutas leva-as o vento.»
AMANHÃ INCERTO
Esperanza Aguirre, a reeleita alcaide de Madrid, não esconde a sua
hostilidade aos acampados. Se dela dependesse, declarou, ordenaria à
Policia que expulsasse da Puerta del Sol os acampados. A repressão
inicial foi esclarecedora da sua posição. Mas carece de poderes para
recorrer à força.
Qual o desfecho do protesto dos «indignados»?
Por ora é imprevisivel.
Vai persistir, transformando-se em desafio ao Poder?
Uma Assembleia, improvisada e tumultuosa como as anteriores, decidiu
manter o acampamento até ao próximo domingo. Durante a semana
os activistas irão aos bairros. Depois se verá.
Em Barcelona e noutras cidades, as concentrações de protesto também
não se dissolveram, mas os próprios organizadores admitem que o número
de participantes diminua nos próximos dias.
Repito: os jovens «indignados» sentem dificuldade em definir um rumo
para a luta que iniciaram. A maioria talvez não tenha consciência da
complexidade do desafio lançado ao Poder.
Volto a citar Angeles Maestro: «O processo de confluência múltipla em
torno a um programa comum somente poderá abrir caminho se criar raízes
nas lutas operárias e populares. Por outras palavras, se a construção
do referente politico beber a seiva na luta de classes e demonstrar a
sua utilidade para abordar um longo processo de acumulação de forças».
A consciência demonstrada pelos «indignados» de Madrid de que a
«democracia representativa» é uma ficção no Estado Espanhol deve porém
ser saudada como acontecimento importante no âmbito das lutas de massa
europeias e não ignorada, subestimada ou mesmo criticada com
sobranceria em atitudes irresponsáveis por alguns dirigentes de
partidos de esquerda da União Europeia.
Não compartilho a euforia prematura de Atilio Boron, mas julgo
oportuno reafirmar que a Espanha não é excepção na Europa. Não há
democracia autêntica sem participação decisiva do povo. Na União
Europeia um sistema mediático perverso e desinformador esconde a
realidade. Os regimes existentes nos 27 diferenciam-se muito. Mas
existe um denominador comum: a ausência de uma democracia autêntica.
Neste início do século XXI, no contexto de uma gravíssima crise
mundial de civilização, o capitalismo, em fase senil, cola o rótulo da
democracia representativa a ditaduras da burguesia de fachada
democrática.
Vila Nova de Gaia, 23 de Maio de 2011.
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