Nesta quarta-feira, 27 de junho, o
militante do PCB Valdimir Herzog completaria 75 anos se vivo fosse.
Assassinado pela ditadura em 1975, sua morte - como a do operário
metalúrgico Manoel Fiel Filho, também militante do PCB - marcaram
profundamente a sociedade brasileira e foram determinantes para levar ao
público as torturas e assassinatos que ocorriam nos porões da ditadura.
Reproduzimos abaixo matéria escrita em
2005 pelo jornalista Celso Miranda sobre como se deu a morte de Herzog e
suas consequências para a vida política brasileira, além de uma carta
divulgada na última semana por seu então colega de trabalho e camarada
de Partido, Paulo Markun, endereçada a Vladimir.
Vladimir Herzog: Mataram o Vlado
Celso Miranda - 01/10/2005
Há 30 anos, a morte do jornalista
Vladimir Herzog em um quartel do exército em São Paulo escancarou para o
Brasil os porões da ditadura militar. Causou a mobilização inédita da
sociedade contra a tortura, encurralou o governo geisel e acelerou o
processo de abertura política
Vladimir acordou mais cedo que de
costume no sábado, 25 de outubro de 1975. Fez a barba, tomou banho e se
despediu da mulher Clarice, ainda na cama, com um beijo. Ela quis se
levantar e preparar o café, ele disse para não se preocupar, que no
caminho pararia em um bar e tomaria café com leite. Vlado chegou ao
número 1 030 da rua Tomás Carvalhal, no bairro do Paraíso, em São Paulo,
perto das 9h. No prédio de muros altos guardados por sentinelas
armados, onde funcionava o Destacamento de Operações Internas - Comando
Operacional de Informações do 2º Exército, o DOI-CODI, Vlado entrou pela
porta da frente. Disse ao atendente seu nome completo, sua profissão e o
número de seu RG. Informou que na noite anterior, por volta das 21h30,
dois homens que se identificaram como agentes de segurança do Exército o
tinham procurado na TV Cultura, onde trabalhava, e que, para não ser
detido, se comprometera a se apresentar ali no dia seguinte. E assim o
fizera. Depois disso se pôs a esperar, sentado em um dos bancos de
madeira que margeavam o largo corredor que levava a uma porta fechada de
aço e vidro. Minutos depois, quando foi levado para interrogatório, ele
permanecia tranqüilo.
O Brasil de 1975 não parecia ser um
lugar em que um jornalista com emprego fixo e endereço conhecido, casado
e pai de dois filhos, devesse se preocupar com a própria segurança. Mas
era. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumira a presidência
com a promessa de promover a abertura do regime ditatorial. A palavra
usada na época era “distensão” e significava aliviar a censura,
investigar denúncias de tortura e aumentar a participação da sociedade
civil na política. A ditadura light de Geisel, porém, encontrou duas
contrariedades. Primeiro a derrota do partido do governo, a Arena, nas
eleições para a Câmara e o Senado. Em novembro, o oposicionista MDB
fizera 16 dos 22 senadores e 160 das 364 cadeiras da Câmara. Depois, o
impacto da crise do petróleo, que colocava fim aos anos do milagre,
quando a economia brasileira cresceu mais de 5% ao ano.
Nos bastidores da política dominada
pelos quartéis, esse cenário despertou o medo da chamada linha dura do
regime. Gente que via qualquer oposição como subversão e que combatia
qualquer subversão com violência, tortura e assassinato. Gente que se
apoiava no CIE – Centro de Inteligência do Exército – e encontrava nos
DOIs espalhados pelo país guarida para atividades ilegais e violentas.
Gente que preferia o inferno à “distensão” e ao que ela representava. Em
menor ou maior grau, essa gente viveu nos porões da ditadura e,
dependendo da ocasião e do apoio oportunista de políticos e militares às
suas práticas, teve menor ou maior influência sobre o governo. Foi
maior entre 1969 e 1973, depois da publicação do AI-5, quando o combate
ao terrorismo e focos de guerrilha os alçaram à linha de frente do
regime. Foi menor em 1974, quando Geisel assumiu. Entre outubro de 1969 e
dezembro de 1973, 2 mil pessoas passaram pelo DOI-CODI em São Paulo:
502 reclamaram de tortura e pelo menos 40 foram assassinadas. Em 1974,
apenas uma foi presa.
Em 1975, porém, a repressão estava de
volta. “Sem terroristas para caçar e com o guerrilha do Araguaia
devolvida ao silêncio da floresta, o Centro de Informações do Exército
avançou contra o Partido Comunista”, diz o jornalista Elio Gaspari,
autor de A Ditadura Encurralada. Em 13 de janeiro o CIE invadiu a
gráfica da Voz Operária, o jornal do partido, que operava na
clandestinidade, num sítio no Rio de Janeiro. No dia seguinte, Elson
Costa, um dos responsáveis pela gráfica e dirigente do PCB, desapareceu.
Foi morto numa casa mantida pelo CIE na periferia de São Paulo, segundo
testemunho do sargento Marival Chaves Dias do Canto à revista Veja, em
1992. Entre janeiro e julho, pelo menos 500 membros do partido foram
identificados, 200 foram presos e pelo menos 14 morreram. Em outubro,
nova onda de prisões: 61 pessoas foram detidas. A intenção era
demonstrar a tese do CIE de que o PCB havia se infiltrado no MDB, na
imprensa e até no governo. Essa última acusação era, inclusive, foco das
desavenças entre o comandante do 2º Exército, o general Ednardo D’Avila
Mello, e o governador do Estado, Paulo Egydio Martins.
Aos 38 anos, Herzog assumira, em
setembro, a diretoria de jornalismo da Cultura, emissora do governo. Era
militante comunista, mas não desenvolvia atividade clandestina e sua
participação se limitava a ir a reuniões. Em sua direção, porém,
confluíam três crises, todas regadas de ódio. “Uma era o choque da linha
dura com Geisel. Outra, a caçada ao PCB. A terceira era o conflito
entre o general Ednardo e o governador Paulo Egydio. A prisão de Vlado
servia a todas”, diz Gaspari.
Tortura e morte
Antes de ser preso, em 17 de outubro,
Paulo Markun, também jornalista da Cultura, conseguiu mandar um recado
aos colegas, indicando quem seriam os próximos. Anthony de Cristo,
George Duque Estrada e Rodolfo Konder foram presos antes de serem
alertados. Fernando Morais conseguiu escapar. Vladimir foi avisado, mas
não quis fugir.
Depois que entrou no DOI, Vlado trocou
de roupa e vestiu o macacão dos presos. Ainda pela manhã, foi acareado
com dois presos. Com as cabeças cobertas por capuzes de feltro preto,
eles não podiam se ver. Mas um deles, Konder, reconheceu o amigo:
“Empurrei a borda do pano e vi o preso que chegava. Eu o reconheci pelos
sapatos: eram os mocassins pretos que Vlado usava.” Nessa hora, Vlado
negou que pertencesse ao PCB e Konder e o outro preso foram retirados
para um corredor, de onde ouviram os gritos de Vlado e a ordem para que
fosse trazida a máquina de choques elétricos. “Os gritos duraram até o
fim da manhã. Os choques eram tão violentos que faziam Vlado urrar de
dor”, diz Konder. Um rádio foi ligado em alto volume para abafar os
sons. Meia hora depois, por volta das 11h, Vlado foi para a sala de
interrogatórios.
“Mais ou menos uma hora depois, me
levaram a outra sala onde pude retirar o capuz e ver o Vlado. O
interrogador, um homem de uns 35 anos, magro, musculoso, com uma
tatuagem de âncora no braço, mandou que eu dissesse a ele que não
adiantava resistir”, lembra Konder. Vlado estava com o capuz enfiado na
cabeça, trêmulo, abatido, nervoso. Sua voz estava por um fio. “Fui
obrigado a ajudá-lo a redigir uma confissão que dizia que ele tinha sido
aliciado por mim para entrar no PCB e listava outras pessoas que
integrariam o partido.” Konder foi levado e os gritos recomeçaram. Essa
foi a última vez que Vlado foi visto e ouvido. “No meio da tarde, fez-se
silêncio na carceragem”, diz George Duque Estrada que também estava
preso no DOI, em relato no livro Dossiê Herzog – Prisão, Tortura e
Morte, de Fernando Pacheco Jordão.
Às 22h08 a Agência Central do SNI, em
Brasília, recebeu uma mensagem: “Info que hoje, dia 25 out, cerca de 15
hs, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército”.
Seria o 38º suicida, o 18º a se enforcar e, de acordo com o Laudo de
Encontro de Cadáver, emitido pela Polícia Técnica de São Paulo, teria
feito isso com uma tira de pano. Herzog teria se amarrado pelo pescoço
numa grade a 1,63 metro do chão. Sem espaço para que seu corpo pendesse,
teria ficado com os pés no chão e as pernas curvadas, como mostrava a
foto anexada ao laudo. Segundo comunicado do comandante do DOI, a tira
de pano era a “cinta do macacão que o preso usava”. Os macacões do DOI
não tinham cinto. “Suicídios desse tipo são possíveis, porém raros. No
porão da ditadura, tornaram-se comuns, maioria até. O último, em São
Paulo, acontecera cerca de um mês antes, na mesma cela. Dos 17 casos
anteriores de suicídio por enforcamento, oito não tiveram vão livre. Em
dois, os presos teriam morrido sentados”, diz Gaspari.
O morto fala
Sem notícias do marido desde a manhã,
Clarice estava preocupada. Por volta das 23h bateu à sua porta um grupo
de diretores e funcionários da Cultura. Entraram calados, sentaram-se na
sala e disseram-lhe que as coisas se complicaram. “Mataram o Vlado!”,
ela teria dito, segundo seu relato no livro Vlado, de Paulo Markun.
“Eles me falaram que Vlado estava morto e que fora suicídio. Senti ódio.
E uma grande impotência.”
“Eles mataram o Vlado”, disse o amigo e
jornalista Fernando Pacheco Jordão, autor de Dossiê Herzog, em
telefonema para Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas.
Era quase 1 da manhã e Jordão ainda daria muitos telefonemas na
madrugada. “Mataram o Vlado”, repetiu a dom Paulo Evaristo Arns. “Não
sei se já não é hora de um protesto mais forte. Quem sabe sair pelas
ruas”, respondeu o cardeal.
O jornalista Mino Carta, na época
diretor da revista Veja, foi um dos primeiros a chegar à casa dos
Herzog. Ele vinha de Santos, onde estivera justamente para pedir a ajuda
do secretário de Segurança do Estado, Erasmo Dias, no caso das prisões
dos colegas. Segundo depoimento a Paulo Markun, no livro Vlado, Mino
ligou para o coronel Golbery do Couto e Silva, ministro da Casa Civil.
“Vá ao Paulo Egydio”, teria dito o “feiticeiro”, como era conhecido por
sua intimidade quase mágica com o poder. Golbery lhe disse, ainda, que
aquilo, a morte de Vlado, era uma tentativa de golpe contra Geisel. Mino
seguiu o conselho e procurou o governador Paulo Egydio, no Palácio dos
Bandeirantes. Quando saiu, o governador chorava.
Desde a morte do ex-deputado Rubens
Paiva, num quartel da Polícia do Exército no Rio, em 1971, era a
primeira vez que morria no porão da ditadura alguém da elite, com vida
profissional legal e atividade política praticamente nula. “Horas depois
da morte de Herzog começou um daqueles processos em que reações
individuais e desarticuladas desembocam em comportamentos que, sem
coordenação ou planejamento, constroem os fatos históricos”, diz
Gaspari.
Mas o DOI tinha sua própria estratégia
para lidar com o assunto. O corpo de Herzog foi entregue à Polícia
Técnica e levado ao Instituto Médico Legal, onde chegou sem a roupa com
que fora fotografado, mas com os próprios trajes. O laudo do exame de
corpo de delito, assinado pelos médicos Harry Shibata e Arildo de Toledo
Viana, do IML, concluiu: “quadro médico legal clássico de asfixia
mecânica por enforcamento”. Ainda na noite de sábado, o corpo foi
enviado ao Hospital Albert Einstein. Estava tudo pronto para mais um
sepultamento típico de mortes ocorridas nas dependências das Forças
Armadas, durante a ditadura: rápidos e discretos.
Clarice não quis assim. Para que
houvesse velório, ela marcou o enterro para a segunda. No domingo, cerca
de 600 pessoas foram à cerimônia, entre eles o cardeal Arns e o senador
Franco Montoro. “Era a primeira vez que um arcebispo e um senador da
República velavam um morto do regime”, diz Gaspari. “Formou-se uma
grande frente e, na segunda, todos estavam mobilizados pela morte de
Herzog.”
No cemitério israelita do Butantã, os
responsáveis pelo funeral apressaram tanto a cerimônia que dona Zora,
mãe de Vlado, não chegou a tempo de se despedir do filho, viu apenas
quando jogavam terra por cima do caixão. Quatro jornalistas que estavam
presos no DOI-CODI foram levados até o local. Konder foi um deles: “Não
deixaram a gente se trocar, me levaram com roupas sujas de urina, sangue
e fezes. Foi assim que assisti ao enterro de meu amigo.”
“Senhor Deus dos Desgraçados, / Dizei-me
Vós, Senhor Deus / Se é mentira, se é verdade, / Tanto horror perante
os céus.” Depois de ler o trecho de Navio Negreiro, de Castro Alves,
Audálio Dantas fez correr entre os presentes outro verso: “Reunião no
sindicato”.
Ação e reação
“Se a tigrada quisera desmantelar o PCB,
já o conseguira. Se queria outra coisa, era outra coisa que queria”,
afirma Elio Gaspari. Pelo menos uma pessoa achou, assim que Vlado
morreu, que era “outra coisa”: o presidente Geisel.
Ele só soube da morte de Herzog no
domingo. Na segunda, em visita ao Rio, não tratou do assunto e parecia
ter assimilado o golpe. Mas a linha dura queria mais. Na manhã de
quarta, dia 29, o general Sylvio Frota, ministro do Exército, ligou para
o ministro da Justiça, Armando Falcão. Falcão relata o telefonema em
seu livro Tudo a Declarar. “O senador do Paraná, Leite Chaves, disse no
Congresso que o suicídio do jornalista Vladimir Herzog não passa de ‘um
crime ignominioso’. Estou reunido com o Alto-Comando e ninguém aceita o
insulto. Queremos uma reparação imediata.” Era a “outra coisa que
queriam”. Queriam atacar o Congresso, provocar cassações e, por tabela,
jogar areia no projeto de distensão de Geisel.
Nas ruas de São Paulo, o clima era
outro. Ainda na segunda-feira, cerca de 30 mil estudantes da USP, PUC e
Fundação Getúlio Vargas entraram em greve. A garotada queria marchar
pela cidade, mas aguardava a reunião com os jornalistas. Juntos,
aprovaram a realização de um ato religioso pela memória de Vlado na
sexta, dia 31. O cardeal Arns tomou a iniciativa: ofereceu a catedral da
Sé e disse que estaria lá.
Na quarta-feira, Geisel mandou chamar
Frota. Há duas versões parecidas para a conversa dos dois generais. Uma
narrada pelo presidente ao seu secretário Heitor Ferreira e relatada por
Gaspari em A Ditadura Encurralada.“Vocês escolham lá um presidente e
venham me substituir”, teria dito. A outra foi narrada por Frota a
Falcão e reproduzida em Tudo a Declarar: “O presidente me disse que se
quisessem insistir no caso tratassem de ir arranjando outro para colocar
em seu lugar”. A ameaça encostou Frota na parede. O ministro recuou.
Até o fim da semana, os dois lados
temeram que o outro reagisse e fosse para a rua. Em Brasília temia-se
que os universitários promovessem passeatas. Em São Paulo, o medo era de
que o regime proibisse a manifestação. Geisel foi a São Paulo na quinta
e se hospedou no Palácio dos Bandeirantes, onde se reuniu com os chefes
militares do Estado. Para começo de conversa, perguntou ao general
Ednardo sobre o Inquérito Policial Militar a respeito da morte de
Herzog. Não fora instalado, porque o ministro Frota determinara que não
fosse. Pois seria. Embora não se destinasse a apurar as causas da morte
de Vlado, mas “as circunstâncias em que ocorreu o suicídio do
jornalista”, a instauração do IPM já era uma derrota para Ednardo, Frota
e a turma do porão.
“À noite, o governador promoveu uma
festa em homenagem a Geisel. Entre os 1500 convidados estava a bancada
oposicionista, até o deputado Alberto Goldman, líder do partido na
Assembléia e militante do PCB”, diz Gaspari. Goldman relata a rápida
conversa que teve com o presidente em seu livro Caminhos de Luta.
“Presidente, o MDB está apreensivo com o que vem acontecendo em São
Paulo, quanto ao respeito dos direitos humanos”, disse o deputado. “Não
pensem que eu não entendo o significado de suas presenças aqui, neste
momento”, respondeu o general.
No dia seguinte, o povo estava na rua e
fazia a primeira manifestação contra a ditadura após o AI-5. Um pouco
antes da hora do culto, dois secretários do governador ainda procuraram o
arcebispo de São Paulo e lhe pediram para cancelar o evento. “Fui
informado que existiriam mais de 500 policiais na praça com ordem de
atirar ao primeiro grito. Se houvesse protestos, eles metralhariam a
população”, lembra dom Paulo. A estratégia dos manifestantes era chegar à
praça em pequenos grupos, evitando aglomerações. Cerca de 8 mil pessoas
se espalharam pelas escadarias da Sé. As que conseguiram entrar viram o
cardeal, o rabino Henry Sobel e mais 20 sacerdotes, entre eles dom
Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife. “Ninguém toca impunemente
no homem, que nasceu do coração de Deus para ser fonte de amor”, disse
dom Paulo. “Nas minhas dores, ó Senhor, fica ao meu lado”, respondeu a
audiência.
Para Elio Gaspari, naquela tarde de 31
de outubro de 1975, a oposição brasileira passou a encarnar a ordem e a
decência. “A ditadura, com sua ‘tigrada’ e seu aparato policial,
revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a
própria reafirmação.”
Veias abertas - Exumação refuta falsa versão de suicídio
Por Marina Della Valle
Durante mais de 30 anos, os restos
mortais da psicóloga Iara Iavelberg (na foto) ficaram na ala dos
sepultados “com desonras” do Cemitério Israelita de São Paulo. O motivo
foi que o laudo oficial não era claro sobre a causa de sua morte. O
legista anotou: “Suicídio?” – assim mesmo, com ponto de interrogação.
Segundo a versão dos militares da Operação Pajussara (que perseguia Iara
e seu companheiro, Carlos Lamarca), ela teria se suicidado com um tiro
no peito em Salvador, em 1971, ao se ver cercada pelos agentes do
governo. “No judaísmo, o suicídio é um crime tão grave quanto o
assassinato”, diz o rabino Henry Sobel. Na época, a família de Iara não
teve acesso ao corpo, que foi enterrado num caixão lacrado. Em 2003,
após anos de brigas na Justiça contra o cemitério, a família conseguiu
encaminhar os restos mortais para a exumação. A análise do legista
Daniel Muñoz, da USP, mostrou que a distância do disparo que matou Iara
era incompatível com um ato suicida. O jornalista Samuel Iavelberg,
irmão da vítima, falou sobre o resultado. O que a exumação significou
para a família?
A vitória foi saber a verdade tantos
anos depois. É o primeiro indício concreto sobre a maneira como ela
morreu. O importante é que a tiramos da área de suicidas. Para lá ela
não volta. O que será feito com o corpo? Gostaríamos que ela fosse
colocada ao lado de meus pais, como eles pediram, mas, se não houver
lugar, ela pode ser enterrada por perto, em terra consagrada. A entidade
que dirige o cemitério alega motivos religiosos, mas na verdade não
quer que um crime militar seja esclarecido.
A gota d’água - A morte de Manoel Fiel Filhoteve impacto inédito: custou acabeça de um general
Erasmo Dias, coronel reformado do
Exército, viu coisas muito sujas durante a ditadura – e fala delas com
uma mórbida naturalidade. Em janeiro de 1976, quando era secretário de
Segurança do Estado de São Paulo, teve que ir verificar mais uma morte
ocorrida nas celas do DOI-CODI. “Fui lá e levei o Rodrigues comigo.
Combinei com ele que íamos ver se era mesmo suicídio. Ele me diria, em
uma escala de 1 a 100, se era possível”, relembra Dias, referindo-se ao
legista Armando Canges Rodrigues. O médico logo afirmou que a chance de
que aquele homem tivesse tirado a própria vida era de apenas 0,1 em 100.
“Bem, aí fizemos a autópsia, porque 0,1 era uma chance e precisávamos
verificar. E deu suicídio. Foi assim: ele enrolou três lenços, fez um
nó, e apertou no pescoço até morrer”, afirma o militar. O laudo oficial
sobre a morte do operário Manoel Fiel Filho (na foto), porém, não
corresponde ao relato de Dias – na melhor das hipóteses, por falha na
memória do velho ex-secretário. Segundo a versão divulgada, o
metalúrgico de 49 anos, pai de duas crianças, teria se enforcado com um
par de meias de náilon azuis. Na manhã do dia 16 de janeiro, uma
sexta-feira, Fiel Filho foi retirado da Metal Arte, onde era chefe de
setor de prensas metálicas, e conduzido por agentes armados para sua
casa. Eles buscavam exemplares do jornal comunista Voz Operária, do qual
o metalúrgico era acusado de ser distribuidor. Não acharam nada e o
levaram para o DOI-CODI, sob os protestos da esposa Teresa – a quem foi
dito, segundo Carlos Alberto Luppi, autor de Manoel Fiel Filho – Quem
Vai Pagar por este Crime?, que seu marido retornaria em breve. Ele foi
levado de volta no sábado. Morto. A tragédia teria um grande impacto nos
bastidores da ditadura. Enforcar alguém no mesmo lugar em que, 84 dias
antes, haviam matado Herzog soava como uma grande provocação à
autoridade do presidente. No domingo à noite, quando soube do “suicídio”
pelo governador paulista Paulo Egydio Martins, Geisel não conseguiu
dormir. Na segunda-feira, o comandante do 2º Exército, Ednardo D’Avila
Mello, responsável pelo DOI-CODI, recebeu um telefonema durante uma
reunião com seus generais subalternos. Levantou-se, saiu da sala e foi
atender. Ao voltar, conforme relata Elio Gaspari em A Ditadura
Encurralada, disse: “Fui exonerado”. Era a primeira vez em toda a
história brasileira que um general era destituído de seu cargo. Quando
D’Avila Mello tentou voltar a presidir a reunião, foi interrompido por
Ariel Pacca da Fonseca. O comandante da 2ª Região Militar era seu
sucessor imediato e não perdeu tempo em assumir a nova função.
Meu querido Vlado
16 de junho de 2012
Na próxima quarta-feira, amigo, você
fará 75 anos. Por razões alheias à nossa vontade, não vou poder lhe dar
os parabéns pessoalmente e assim, aproveito para fazer isso aqui – e
contar algumas coisas que aconteceram desde a última vez que nos vimos,
numa sexta-feira, 19 de outubro de 1975 – sim, há 37 anos!
Você certamente não ficou sabendo, mas
no sábado seguinte, 25 de outubro, um carcereiro chegou diante da grade e
chamou meu nome. Eu estava com pelo menos uma dúzia de presos na última
cela de um corredor do Doi-Codi em São Paulo, o centro de tortura do
regime militar. Todos vestidos com macacões verdes do exército, sem
cinto e no meu caso, sem botões também. O fulano abriu a cela, colocou o
capuz preto sobre a minha cabeça e começou a me guiar como um cego.
Imaginei que pudesse ser uma acareação com outro preso, mais um
interrogatório, nova sessão de tortura, quem sabe uma excursão pelas
ruas da cidade em busca de outro companheiro. Já passara por tudo isso e
por muito mais – até mesmo a insólita saída para batizar Ana, a minha
filha (virou atriz), acompanhado por uma equipe com as armas enfiadas em
duas sacolas de lona preta. Mas quando o sujeito tirou meu capuz, havia
diante de mim uma carteira de fórmica, dessas de escola, com uma
espécie de prancheta do lado direito. Sobre ela, uma pilha de papel
almaço e uma caneta. Antes de me deixar ali, recebi uma ordem curta e
grossa:
- Escreva tudo o que você sabe sobre Vladimir Herzog.
Embora já ganhasse a vida escrevendo há
quatro anos, foi meu texto mais difícil. Quase trinta anos mais tarde,
encontrei as folhas amareladas no Arquivo do Estado, quando buscava as
informações para contar nossa história.
Lembro que nos conhecemos na redação da
Folha de São Paulo, em março de 1975, provavelmente. Você assumira a
chefia da sucursal do Opinião e queria que eu fosse um dos
colaboradores. O jornalzinho era o sonho de consumo, se é que a metáfora
se aplica, para os jornalistas que viam a profissão como uma trincheira
de luta pela democracia. Não conseguia noticiar quase nada, barrado
pela censura, mas se dispunha a fazer o que muito jornalão evitava.
Escrevi umas matérias – um punhado
passou pela censura – e substituí você na direção da sucursal, durante
uma viagem aos Estados Unidos. Na volta, emprestei uma casinha de praia
pra você escrever o roteiro do Doramundo, aquele filme que você queria
fazer e o João Batista de Andrade realizou e ficamos amigos. Mas,
caramba, você nunca me contou sua história. Nem deu tempo. Fiquei
sabendo em 1985, quando escrevi meu primeiro livro sobre sua história e
descobri sua infância como refugiado judeu na Itália, vivendo sob nome
falso, seu pai fingindo ser mudo para esconder o sotaque iugoslavo, o
resto da família indo parar num campo de concentração. Aos oito anos,
quando os Herzog chegaram a São Paulo e foram morar na Mooca, o Brasil
vivia a abertura democrática. Eu tinha seis anos quando você se
preparava para o vestibular e fez um teste no jornal O Estado de S.
Paulo. Começou a estudar filosofia, mas já tinha mergulhado no
jornalismo. Integrou a equipe pioneira que implantou a sucursal de
Brasília. No final de 1962, conheceu Clarice, com quem se casou pouco
antes do golpe de 1964. Em 65, com uma bolsa de estudos, você foi
trabalhar na BBC e Clarice o seguiu seis meses depois.
Em setembro de 1975, você se tornou
diretor de jornalismo da TV Cultura e teve a coragem de me transformar
em chefe de reportagem (eu tinha 23 anos, lembra?). Bom, o resto da
história, a gente conhece: fomos alvejados por uma campanha destinada a
abater o governador Paulo Egydio Martins e, por tabela, o general
Ernesto Geisel, que era presidente. Campanha facilitada pela repressão
ao Partido Comunista, onde nós dois militávamos, em posições secundárias
e acreditando que era um caminho para reconquistar a democracia e
construir um Brasil socialista e livre.
Naquele sábado, 25 de outubro, os
militares do Doi-Codi reuniram os jornalistas que estavam presos e nos
disseram que você tinha se suicidado e que era agente da KGB! Ninguém
aceitou a ideia e para provar que choque não mata ninguém, me fizeram
acionar a máquina chamada pimentinha com um torturador segurando os
fios. No dia seguinte, fomos soltos temporariamente para ir ao seu
enterro. Tinha muita gente, todos chocados.
Voltamos ao Doi-Codi e dali para o DOPS,
onde ouvimos os policiais treinando tiro para reprimir o culto
ecumênico que aconteceu na catedral da Sé. Primeira grande manifestação
contra a tortura, resultado da ação de dom Paulo Arns, do rabino Henry
Sobbel e do reverendo James Wright, com respaldo do Sindicato dos
Jornalistas, de estudantes e políticos da oposição.
Depois disso, amigo, muita coisa
aconteceu. Um inquérito armado pelo governo e manipulado concluiu que
você se matara, apesar de todas os depoimentos em contrário. O general
Geisel demitiu o comandante do II Exército quando outro comunista
desimportante, o operário Manoel Fiel Filho foi “suicidado” no Doi-Codi.
O problema do presidente era a desobediência, não a tortura.
Clarice entrou com uma ação na Justiça e
provou que o Estado era responsável pela sua morte. Não pediu
indenização, só justiça. Houve a anistia, os exilados voltaram e com
eles, as eleições diretas para governador – a oposição ganhou em dez
estados. A campanha das diretas parou o país e se não acabou com o
colégio eleitoral, garantiu a eleição indireta do Tancredo Neves, que
morreu antes da posse. José Sarney virou presidente, fez a Constituinte e
em 1989, elegemos um certo Fernando Collor, de que você nunca ouviu
falar. Acabou saindo pelo impeachment.
Fernando Henrique, que era do conselho
editorial do Opinião virou presidente, foi reeleito e passou a faixa
para o Lula (lembra?) que também governou oito anos e foi sucedido por
uma ex-guerrilheira, Dilma Roussef, que afinal criou a Comissão da
Verdade para apurar casos como o seu e tantos outros menos conhecidos.
Seu filho Ivo criou o Instituto Vladimir
Herzog, para valorizar a liberdade de imprensa e os direitos humanos.
Está fazendo um belo trabalho de resgate da história dos jornais
alternativos e uma programação de festa pelos seus 75 anos. Quando
lembro dele e do André garotinhos, me sinto meio velho. André trabalha
em Washington no Banco Mundial com políticas públicas para Ásia e
África. Clarice vai muito bem, obrigado.
O Brasil também vai bem. Não tanto
quanto sonhamos, mas muito melhor do que no tempo em que convivemos. A
democracia tem seu valor, apesar (ou por causa) das denúncias e das
CPIs, que não existiam na ditadura. Ah, vivo parte do tempo em
Florianópolis. Escrevi uns livros, fiz uns documentários e fui
presidente da TV Cultura. Mas um dia conto como foi essa experiência.
Abraços, saudades e parabéns.
Markun
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