quarta-feira, 9 de setembro de 2009

UNASUR: Vale o que se faz, não o que se diz - por Carlos Laquinandi Castro

A grande expectativa diante da reunião da UNASUR em Bariloche, ficou clara o número abundante de notas e artigos que analisaram ou extraíram conclusões diversas daquele esperado encontro. O eixo dos debates: o já consumado acordo assinado pelo presidente da Colômbia, através do qual cede a utilização “compartilhada” de sete bases militares – de terra, mar e ar – ao exército dos Estados Unidos. Tinha sido defendido em Quito, em meados de agosto, pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela, com a concordância dos demais presidentes, como um tema que requeria, para ser analisado, da presença do presidente Álvaro Uribe, da Colômbia, que não participou da cúpula da capital equatoriana. Entre uma reunião e a outra, Uribe deslanchou sua ofensiva diplomática, percorrendo várias capitais sulamericanas, encontrando-se com os presidentes do Peru, do Paraguai, do Chile, da Argentina, do Uruguai e do Brasil, tentando diminuir receios e desconfianças. Todos estes movimentos desembocaram na reunião de Bariloche, que foi o centro das expectativas continentais.

Ao examinarmos o que foi publicado sobre os debates destes dias, encontramos diferentes versões. Uns falam de “repúdio total às bases estrangeiras”, outros consideram que houve uma vitória de Uribe e há também os que destacam que a Unasur manteve sua coesão como organismo regional. Um quadro de definições que graficamente podemos descrever como ver a garrafa “meio vazia” ou “meio cheia”, medidas equivalentes mas que dão a impressão de serem opostas. Na verdade podemos dizer que foi uma das reuniões às quais nós, latinoamericanos, ainda não estamos acostumados: houve bastante franqueza nos pronunciamentos, a maior parte das exposições foram públicas, houve momentos de tensão não dissimulada, mas também gestos de cortesia ou piadas oportunas que ajudam a distensionar. As evidentes discrepâncias sobre um tema tão grave como o que gerou a decisão de Uribe, com flagrantes repercussões continentais, foram debatidas com argumentos duros, com muitos dados, com citações e promessas, mas com um saldo final de parcos compromissos.

Do dito ao feito...

A presidente da Argentina, Cristina Fernandez, em seu papel de anfitriã, tentou que a reunião tivesse resultados práticos, mas ao mesmo tempo fez tudo para que as divergências não levassem a uma ruptura. Talvez por isto, ao abrir a sessão, lembrou que seu objetivo era “fixar doutrina sobre como a Unasur vai tratar a questão da instalação de bases de um país que não faz parte da América do Sul, em qualquer um de nossos territórios”, fazendo clara referência à presença militar norteamericana na Colômbia. Mas também adiantou que “não se necessitavam discursos empolgados que sirvam para ocultar os fatos que teremos que analisar”. Também correspondeu a ela assumir a coletiva de imprensa no final, juntamente com o atual presidente da Unasur, Rafael Correa, do Equador. Nesta entrevista ela descreveu a reunião com um enfoque otimista, mas isso não significou mais do que um gesto voluntarista: a “doutrina” acabou resumida em frases imprecisas e os parágrafos que mencionam a possível existência de tropas estrangeiras têm o incerto condicionamento de que “sempre e quando não ameacem a soberania e a integridade territorial dos países da região”. Acreditar que este parágrafo evita ou diminui a ameaça potencial das bases conjuntas,somente se explicaria por uma enorme ingenuidade ou a partir do esquecimento total da história de nossa América.

Das idas e voltas que permearam as sete horas de debate pode mos resgatar que alguns presidentes demonstraram claramente seu repúdio à decisão do governo colombiano em transformar seu território em um gigantesco porta-aviões do qual possam operar tropas e técnicos norteamericanos com uma ampla projeção regional. Os limites neste debate foram unicamente a vontade comum de não quebrar a precária unidade formal da Unasur. Definitivamente como espaço regional é razoável que seja o espaço de diálogo e de contraposição de argumentos e objetivos diferentes. Mas uma coisa é preservar o espaço comum e outra é admitir fatos greves que podem se tornar irreversíveis.

Também foi possível comprovar que Uribe não tem dúvidas em relação a seu compromisso com os Estados Unidos, não somente com Obama, mas com o país que lhe dá toda assistência, que o Mantém e que lhe dá todo respaldo sem importar-se com seus antecedentes. Nisto o Império, seja quem esteja no governo, prefere pensar e dizer como se fosse uma letra de tango: “que me importa teu passado!”. O país que em outras épocas deu respaldo a Somoza, Stroessner e Pinochet, entre outros, em quem explicitamente reconhecia a maldade quando os definia como “seus” filhos da puta,não tem nenhum pudor em “esquecer” os informes de seus próprios serviços de inteligência sobre a vinculação de Uribe com o narcotráfico e com os paramilitares. O que agora interessa aos Estados Unidos é poder contar com esta cabeça de ponte na América Latina, para poder recuperar o controle de seu hoje remexido e disperso “pátio traseiro”.

Outras intervenções, (como as de Lugo e Tabaré Vasquez) permitem deduzir que houve rechaços verbais às bases que foram pronunciados num tom quase de desculpa, ou misturados com alusões ao direito soberano de cada país dentro de seu território. Segundo a interpretação que se faça, isto pode chegar a ser contraditório. Chavez esteve contido, seguramente foi advertido por diversos ângulos mais ou menos “aliados” para que não deixasse romper a barreira. Mas, ainda assim, disse coisas claras: destacou que a instalação de bases norteamericanas em solo colombiano, corresponde à estratégia global de dominação dos Estados Unidos. Citou mo livro branco do Comando de Mobilidade Aérea e a Estratégia Global de Bases de Apoio do governo norteamericano. Ali, segundo afirmou, está demonstrado claramente o especial interesse dos Estados Unidos em operar na Base de Palanquero, importante enclave no coração da Colômbia. Chavez afirmou acreditar em uma iniciativa de paz para a Colômbia. “É o que necessitam os colombianos e os demais povos da região, que se alcance a paz nessa nação”, afirmou. E rejeitou os argumentos de Uribe justificando o avanço da militarização estrangeira de seu próprio território.
Correa foi dos mais claros e foi até subindo de tom quando lembrava o “controle” real que o Equador teve sobre as operações ianques na base de Manta, em seu próprio território. “Nada, não se comprometam porque não vão poder controlar nada”, afirmou categórico o presidente equatoriano. Recordou o completo fracasso do chamado Plano Colômbia, que apesar da injeção milionária de recursos realizados desde o ano 2000, não conseguiu cumprir nenhum de seus objetivos.

Lula estava visivelmente incomodado quando ouvia intervenções (como as de Correa, por exemplo) nas quais o repúdio às bases era categórico. Mas em suas intervenções acabava mostrando suas dúvidas sobre as verdadeiras intenções do avanço militar norteamericano e continuava pedindo “explicações” e “garantias jurídicas”. Ou seja, não estava a favor, mas tampouco se expressava categoricamente contra. Com esta ambivalência não conseguiu revalidar suas pretensões de liderança da região.

Há muito caminho ...

Se nos abstivermos das palavras e do tom com o qual elas foram pronunciadas, restam os fatos que em definitivo é o que importa. E o resultado é que a Colômbia cederá suas bases, a decisão está tomada entre os dois países envolvidos. O fato é que o repúdio ou a desconfiança não se materializou em uma declaração coletiva ou de uma maioria de países da Unasur. A causa possível é que se preferiu não romper a unidade, que, obviamente, não existia para uma resolução deste tipo. Em realidade, os pontos finais aprovados, não passaram de generalidades sem nenhum valor prático. Um dos parágrafos afirma o compromisso de desenhar uma estratégia de segurança para garantir a paz na região e expressa: “estes mecanismos deverão contemplar os princípios de irrestrito respeito à soberania, à integridade e à inviolabilidade territorial e a não ingerência nos assuntos internos dos estados”.

Uma expressão de futuro,que se contradiz abertamente com os fatos consumados: o acordo que cede bases e capacidade operativa ao exército norteamericano, com pouquíssimas possibilidades de controle e sem chances de reversão num futuro imediato. Um pacto que inclui a impunidade das tropas estrangeiras e dos mercenários ( que eles chamam de “contratistas”), que cometam qualquer delito em terras colombianas. Em todo caso e com sorte serão julgados...nos Estados Unidos. Ou seja, assim como aconteceu no Vietnam, no Iraque e no Afeganistão.

Os fatos mostram que a maioria dos presidentes da Unasur rejeitam a decisão de Uribe. Uns de forma aberta e expondo argumentos ( Chavez, Correa e Evo Morales). Outros de modo mais vago, mas acrescentando seu respeito por decisões que consideram “soberanas” em política interna (Tabaré Vasquez, Bachellet e Lugo).
Alan Garcia supõe, como o próprio Uribe, que a ingerência norteamericana é uma garantia para sua própria debilidade interna. Há que se considerar que essa nova situação e o debate que ela suscitou, tem passado quase que inadvertidamente a tentativa do presidente colombiano de forçar uma nova reeleição, que seria seu terceiro período. Por muito menos, e quando nem havia possibilidades reais de reeleição, a oligarquia e as cúpulas militares e religiosas de Honduras justificaram a derrubada violenta de seu presidente constitucional, Manuel Zelaya.

Lula está tentando um difícil equilíbrio. Fica incomodado com a decisão de Uribe e desconfia do verdadeiro alcance que possa ter a presença militar norteamericana. Sabe que Chavez é hoje o símbolo regional dos receios de Washington, mas que o Brasil, por razões geoestratégicas é um país que os Estados Unidos querem muito manter sob controle. Mas Lula não busca um enfrentamento com os Estados Unidos e procura marcar sua diferença com a forma e as atitudes de Chavez. Tenta exercer uma liderança em que não apareça como tendo um poder delegado por Washington, uma certa independência, mas que tampouco possa ser visto como um aliado do presidente venezuelano. “Ni chicha ni limoná”, cantaria Victor Jara.
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Nota do tradutor: o autor se refere a uma música de Victor Jara – compositor e cantor chileno, assassinado nos primeiros dias do golpe de Pinochet – cujo refrão diz que “você não é nada, nem chicha nem limonada”. Chicha é a primeira fermentação da uva no processo de produção do vinho.

Em realidade, a decisão de Uribe extrapola as margens previsíveis do Plano Colômbia e assume, sem dissimulações, o genérico objetivo de “luta contra o terrorismo” conceito no qual, a história recente nos ensina, pode entrar qualquer coisa. O que acontecerá se operações explícitas ou clandestinas ultrapassarem as fronteiras da Colômbia? Já aconteceu na Venezuela, quando foram capturados dezenas de paramilitares colombianos que estavam participando de treinamento no sítio de um cubano. Aconteceu no Equador, quando sem aviso prévio aviões colombianos lançaram uma incursão em seu território. E se acontecimentos similares se repetem, mas com tropas dos Estados Unidos?

Chavez, Correa e Evo Morales qualificaram com precisão o risco que representa a decisão de Uribe para a paz e para a independência dos países vizinhos da Colômbia. A Unasur garantiu sua unidade formal, fato que todos os presidentes consideraram muito importante. Mas os resultados da reunião de Bariloche confirmam a contraofensiva que está em marcha contra os processos de mudança na América Latina. As palavras e os discursos não conseguem maquiar a realidade.

O que podemos esperar?

Obama prometeu e ensaiou uma relação diferente com os países do sul. Mas a realidade demonstra que o império volta a prestar atenção na América Latina, que foi ignorada, ou pelo menos descuidada por Bush. E o império faz isso recuperando seus métodos habituais, ou seja, controlar – de qualquer maneira – o que consideram seu “pátio traseiro”. Não sabemos exatamente o que quer e o que poderá fazer Obama. Mas já estamos sabendo o que pretende o i9mpério.

Os fatos nos indicam que a contraofensiva contra as mudanças sociais que vem sendo construída pelos povos da América Latina, está em marcha. Não esqueçamos o golpe em Honduras, sobre o qual a administração norteamericana ainda “estuda” juridicamente para saber se foi realmente um golpe militar ou uma “sucessão presidencial”. Ao final deste processo, por trás das palavras de condenação, a ONU, a OEA, o Plano Arias, Insulza, etc, etc. o objetivo dos golpistas é entregar o governo, em janeiro, a um presidente “legal”, surgido das eleições que serão controladas pelos usurpadores. Os únicos que podem impedir isto, são os hondurenhos, este povo que resiste cotidianamente com marchas, protestos e uma vontade formidável.Isso é o que vai ficando claro. Que uma vez mais são os povos, partindo de baixo, com sua própria capacidade de organização e de mobillização, os que podem garantir que se consolidem os processos de mudança e de transformação na América Latina.

Unasur salvou sua unidade. Mas lá está Uribe disposto a entregar a soberania de seu país e colocar em risco a paz e a segurança do continente. Lá está Honduras, em mãos de uma quadrilha de oportunistas cumprindo os objetivos da oligarquia. Isto é o que sentimos. Isso é o que todo mundo percebe. E isso marca o caminho: somos os povos, o colombiano incluído, que teremos que assumir o protagonismo para evitar que caiamos em novas formas de colonialismo e dominação e para que possamos garantir os processos libertadores que estão em marcha.

Carlos Iaquinandi Castro, da redação de SERPAL, Servicio de Prensa Alternativa.

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