segunda-feira, 30 de março de 2009

BOLÍVIA: UM ESTADO EM TRANSIÇÃO

por Marcos Domich (Diretor de “Marxismo Militante”, Secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista Boliviano, PCB)


No dia 25 de janeiro ocorreu, na Bolívia, da maneira mais democrática e límpida, uma nova vitória do processo de transformações progressistas encabeçado por Evo Morales. 61,45% da população votante se pronunciou pelo SIM à nova Constituição Política do Estado (NCPE).

A aprovação rotunda da nova Constituição é o quarto êxito consecutivo nas urnas, sem contar momentos complicados que foram superados com dificuldade e não detiveram a marcha ascendente do processo. No ano passado, fracassou um golpe orquestrado no âmbito das organizações cívicas e das prefeituras, apesar de toda a violência que exibiram, tomando e cometendo atrocidades em mais de 70 instalações e edifícios oficiais. Foram produzidas típicas ações de excesso e violência injustificada, sobretudo contra as pessoas de aspecto ou vestes indígenas. Congressistas e parlamentares foram agredidos e perseguidos até provocar seu exílio. Não faltaram as agressões e a hostilidade aos jornalistas dos meios de comunicação oficiais. Ocorreram grandes danos a instalações de transporte de hidrocarbonetos e o desabastecimento de azeite comestível, carne bovina, arroz e outros.

Não se pode deixar de mencionar a permanente pressão e inclusive os equívocos de algumas organizações populares e sindicais; a instigação a bloqueios de caminhos, ocupações, greves, etc. com o pano de fundo de uma linguagem inflamada, tanto de esquerdismo como indigenismo radical. Referimos-nos à mencionada utilização, funcional aos interesses da direita e do imperialismo, de agentes incrustados nas organizações populares ou de caudilhos ambiciosos.

A situação atual pode resumir-se no seguinte: O governo de Evo Morales busca a aplicação plena da nova Constituição e se prepara para enfrentar o desafio eleitoral das eleições gerais antecipadas no próximo mês de dezembro. Por sua parte, a direita busca atrapalhar aquela aplicação e desconhece a validez do referendo, ainda que tenha alcançado apenas uma votação de 38,57%. Enfatiza que quatro departamentos se pronunciaram contra a sua aprovação e que onde se deu esse resultado não há possibilidade de vigência, em particular, do capítulo de autonomias da NCPE. Já veremos que este é, antes de tudo, um pretexto.

O novo impulso da oposição reacionária se baseia em que o NÃO venceu em 6 das 9 capitais de departamento. Isto assinala uma perda de preferência ou simpatia pelo processo, sem dúvidas, sobretudo nas camadas médias. É sem dúvida uma advertência.

Mantêm-se, no entanto, firme apoio nas províncias. O SIM ganhou na grande maioria delas (86 SIM contra 26 NÃO). Nos departamentos de La Paz, Potosí e Oruro, o SIM ganhou em todas. Em dois departamentos (Cochabamba e Chuquisaca) onde a oposição venceu nas capitais, mas não ganhou em nenhuma província mais. Por outro lado, na chamada “Meia Lua” (Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando) houve províncias e seções municipais nas quais o SIM ganhou.

O plebiscito teve duplo caráter: aprovatório da Constituição e definitório, consultando-se o eleitorado sobre o limite máximo admissível da propriedade rural: 5.000 ou 10.000 hectares. O resultado é simplesmente espetacular: 5.000 hh ganhou em todas as províncias e todos os departamentos por não menos de 66%. Isso significa 80,65% de votos por 5.000 hh e 19,35% por 10.000 hh. Aqui se afloram inocultáveis orientações de classe. Na Bolívia, poucos defendem o latifúndio e existe força social para liquidá-lo. As classes possuidoras estão isoladas e são uma insignificante minoria. Porém têm uma grande força política, derivada do seu poder econômico e do apoio externo; isto é o que deverá ser derrotado, apesar da feroz resistência que com certeza apresentarão.

Também serve para esclarecer a confusão que existe sobre o caráter do enfrentamento. Os que levantam que se trata de uma confrontação étnica, cultural ou regional dão de cara com o que se trata, em essência: a luta de classes. Os processos políticos da atualidade, em todos os confins do planeta, por muitas cores, matizes e tons que adquiram, respondem à contradição fundamental da época: despossuídos contra possuidores, explorados contra exploradores. Marx segue vigente quando diz que o motor da história é a luta de classes.

É óbvio que os revolucionários não podem ignorar os tons e as matizes que, em determinados momentos, adquirem força superlativa. É que a identificação pessoal com o grupo humano (raça, etnia), com a religião ou com a cultura toca, antes que na esfera da razão, na esfera da afetividade. E na atividade humana, individual ou grupal, o afetivo é o efetivo.

Enquanto setores da oposição moderada preparam-se para as eleições, o núcleo duro da resistência às mudanças aplica novas ações de desgaste e de desestabilização do governo. Ainda que não prospere, já tentaram um julgamento de responsabilidade de Evo e, novamente, estão agitando o ambiente com diversos motivos. Buscam não chegar às eleições porque sabem que serão derrotados. Há tempos que a confrontação democrática deixou de ser seu terreno e, destemidos, continuam preparando o golpe final. Parece que querem confirmar a afirmação de que a violência (neste caso, sangrenta) é a parteira da história.

Fracassados nas urnas e na provocação de convulsão social; em golpear as portas dos quartéis; divididos em numerosas frações, sem líderes e vítimas do isolamento internacional, recorrem à sua cartada mais forte: a secessão do país. O velho discurso federalista tem sido retomado pelo antigo presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz ao conceber o estabelecimento de “um só país confederal com dois sistemas”. O novo presidente do Comitê, em seu discurso de posse, não o escondeu e com outras palavras afirmou que: “Santa Cruz é uma nação” e estavam “cansados de ser os propulsores do desenvolvimento e não ser o centro político”. É óbvio que há uma radicalização do discurso anunciador de dias de comoção.

Então surge a histórica pergunta: Que fazer? Como defender o processo e como aprofundá-lo? Para responder a estas perguntas é preciso situar-se no momento histórico. Desde a instalação do governo popular em janeiro de 2006, ingressou-se num período de transição marcado por transformações tanto na estrutura, como na superestrutura. Na estrutura aponta-se essencialmente a recuperação do setor estatal ou o chamado estratégico da economia: energia (hidrocarbonetos, energia elétrica) transportes (ferrovias e transporte urbano estatal); telecomunicações; mineração e metalurgia com supremacia estatal. Fomento à produção de alimentos e vestimentas nacionais. Em matéria social, redistribuição justa da riqueza social e maior atenção aos setores mais vulneráveis: crianças e idosos.

Todo o anterior não configura ainda um processo revolucionário. Ainda nos movemos no terreno da velha formação social. Não toca a essência da antiga estrutura que ainda funciona sob características tipicamente capitalistas. Ainda que seja evidente que se tenha abandonado o neoliberalismo, este não foi erradicado e ainda possui forte presença, tanto na economia real, em todo o aparato jurídico acumulado em 25 anos, assim como na conduta e até na psicologia dos agentes econômicos. Na verdade, busca-se um capitalismo de Estado, porém sob um poder popular.

A nosso ver, a tarefa central é pôr em vigência a nova Constituição, a qual definiremos brevemente como uma Constituição democrática para um país pela primeira vez reconhecido como plurinacional, que busca um desenvolvimento econômico e progresso social em benefício de todos os bolivianos (sumaj causana, suma camaña, bem-estar); que sente realmente a soberania nacional no plano internacional, que pratique a solidariedade internacional priorizando a integração latino-americana e pratique uma política de paz que exclua a guerra como meio de solução dos problemas e litígios internacionais. Em suma, um país de iguais, democrático e com justiça social. Isto ainda não é o socialismo, o qual se caracteriza pelo surgimento de novas relações sociais de produção, pela desaparição gradativa da propriedade privada dos meios de produção, a extinção progressiva das desigualdades de classe e das classes mesmas. Tudo isto significa superar a alienação do trabalho e é um processo historicamente longo. Começa pela conquista de uma democracia plena que possibilite o desenvolvimento integral da pessoa humana, definitivamente livre.

Quando o Presidente Morales promulgou a nova constituição, reiterou que estava em marcha a revolução democrático-cultural, porém acrescentou que sua meta final é o socialismo comunitário. A nova Constituição não coloca nenhuma dificuldade nem impedimento, pelo contrário, abre mais os caminhos para isto. Mas não será fácil o caminho. Existem problemas complexos como os da aplicação do regime autônomo nos seus diferentes níveis. Deverá ir pausadamente. Talvez o método seja o da prova-erro-prova, até encontrar o adequado. Neste sentido resgatamos o conceito de Marx da revolução permanente, longe, evidentemente, da interpretação trotskista que a entendeu como exportação da revolução. Porém, antes de tudo, é preciso não complicar-se na aplicação dos elementos secundários, simbólicos, e sim nos que fazem a estrutura, como a liquidação do latifúndio, por exemplo.

Para concluir, está o tema da condução do processo e de sua transformação em revolução socialista. É preciso basear-se em estruturas sólidas, com objetivos e concepção elaborada e provada pela prática revolucionária universal, alheia à improvisação e à espontaneidade.

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