domingo, 1 de fevereiro de 2009

O Caso Batistti: Considerações Desde El Sur - por Antonio Carlos Mazzeo*

"Repugno a hostilidade contra o povo brasileiro, que não vacilou em mandar à Itália 25.000 de seus soldados para combater o nazi-fascismo"

A decisão de conceder asilo político ao cidadão italiano Cesare Battisti, ex-militante do grupo de ultra-esquerda, Proletari Armati per Il Comunismo (PAC), vem suscitando um grande debate na Itália, debate esse acompanhado de manifestações e protestos políticos e ideológicos contra a decisão brasileira, algumas, com forte teor de passionalidade. Mas ao lado das manifestações “folclóricas”, outras, com teores político-ideológicos mais substanciais, acusaram o Brasil de “romper as normas vigentes na relação jurídica com o mundo civilizado”. Esse foi o caso do ministro do interior, Roberto Maroni, que afirma que essa decisão dificulta outras relações jurídicas entre os dois países ou do deputado Piero Fassino, do Partido Democrático - ex-PCI, ex-PDS, ex-DS - que diz ser essa decisão política do governo brasileiro um erro por desconhecimento da realidade italiana, culminando com a chamada do embaixador italiano no Brasil para “consultas” e o ridículo: a proposta estapafúrdia do sub-secretário das Relações Exteriores da Itália, Alfredo Mantica, de cancelar uma partida de futebol amistosa entre as seleções nacionais dos dois países!

Mas, para além de toda essa vociferação, o que temos de fato, é a tergiversação do problema central que envolve o “caso” Battisti, isto é, como foram conduzidas as investigações e seu julgamento. Batisti foi indiciado em crimes de assassinato a partir de acusações feitas por um ex-companheiro de organização, Pietro Mutti, que se valeu de um recurso jurídico italiano, conhecido como “delação premiada”, que da ao delator privilégios, como no caso de Mutti, a liberdade e uma nova identidade. O bizarro de tudo isso, é que Battisti é acusado de haver cometido dois crimes, ocorridos em duas cidades distantes uma da outra, no mesmo dia e apenas com meia hora de diferença entre eles, um em Milão e outro na cidade de Udine. Além disso, Battisti foi julgado in absentia, e chegou-se ao absurdo de se falsificar sua assinatura, (falsificação constatada mais tarde por exame grafológico) para nomear advogados indicados pelo governo que aceitaram um julgamento sem a presença do réu.

Não houve demonstrações de provas concretas, e todo o processo baseou-se apenas nos relatos de Mutti. Mas o que agrava o indiciamento e a condenação de Battisti é que existem indícios substanciais, e que ainda não foram aclarados devidamente, que essas “confissões” feitas pelos ex-guerrilheiros que colaboraram com o governo, conhecidos como pentiti (arrependidos), foram arrancadas sob torturas, conforme denunciou à época a Amnesty International e a escritora Laura Grimaldi. Cabe dizer, ainda, que naquele período prevalecia uma lei de exceção que concedia às investigações das organizações consideradas terroristas detenções de pessoas sem autorização judicial e que até hoje, dificultam qualquer tentativa de reabertura dos processos que envolveram as organizações subversivas dos “anos de chumbo”.

Mas para que possamos responder adequadamente essa questão, devemos buscar as “razões de toda essa “indignação” por parte do governo e de uma certa “esquerda” italiana. Sabemos que nos “anos de chumbo”, na Itália, entre 1969 e 1980, vários grupos dissidentes do PCI, então a maior força política da esquerda italiana, formaram organizações que propunham a luta direta pelo socialismo, questionando as posições do PCI, naquele momento, empenhado em construir o “Compromisso Histórico”, baseado numa aliança com a Democracia Cristã, numa clara posição de conciliação de classes, dentro de uma opção política institucionalista que apontava para uma posição de radical reformismo, mais tarde evidenciado e aprofundado com a destruição do PCI e a formação do PDS.

Muitas dessas organizações, fundamentadas em visões políticas distanciadas da realidade concreta italiana, optaram equivocadamente pela luta armada, dentre eles o mais conhecido grupo, As Brigadas Vermelhas, que em curto espaço de tempo, foi alvo de ações de infiltração policial e de outros órgãos de informação internacionais, como a CIA. O rapto e assassinato do Presidente do Conselho de Ministros e expoente da DC, Aldo Moro, por parte das Brigadas Vermelhas, desencadeou uma grande instabilidade política no país, fazendo inclusive, retroceder algumas conquistas de esquerda. O PCI, que se preparava para entrar no governo, dentro da concepção do “Compromisso Histórico” acaba, objetivamente, fazendo coro com a extrema direita, quando apóia medidas de exceção para o combate aos grupos de ultra-esquerda, todos considerados, a partir de então, como “terroristas”. È nesse contexto que cai sobre a esquerda que se encontra fora do PCI uma furiosa repressão, e é esse o escopo das leis especiais que permitem julgamentos sumários e informações de prisioneiros arrependidos que se lumpenizam e, para obterem regalias do governo, acusam-se mutuamente.

A introdução das leis especiais contra o “terrorismo”, de certo modo, ajudou a progressiva criminalização, não somente da esquerda que se opunha à política do velho e decadente PCI, que se desintegra em 1991, mas reforçou as posições de ultra direita. Por outro lado, os ex-comunistas fundam o PDS e passam a propor a “refundação do capitalismo”, sob o nome de democracia radical. Ambos os grupos, continuaram a sustentar as leis de exceção e a legitimar os julgamentos políticos feitos entre as décadas de 1970 e 1980.

Mutatis mutandis, essa situação continua até os dias de hoje. A socialdemocracia italiana nunca pôs em discussão a legislação excepcional anti-terror e nunca questionou a política internacional da Itália de alinhamento mecânico com os EUA. A postura pró-imperialista da socialdemocracia italiana, já havia provocado no primeiro governo Prodi rupturas com setores da esquerda antagonista, culminando com a saída do Partido da Refundação Comunista, PRC, do governo.

O PDS, depois transformado em DS, governou a Itália, através de alianças ditas de “centro-esquerda”, mas tendo o PRC fora do governo e na oposição. Exatamente quando o ex-comunista Massimo D’Alema é eleito Presidente do Conselho, a Itália participa como ator importante nos bombardeamentos à ex-Iugoslávia, onde milhares de civis foram mortos pelas bombas e pelas tropas da OTAN. Por outro lado, qualquer tentativa de condenar o governo italiano pelo apoio à invasão e destruição da Iugoslávia era prontamente acusada de terrorismo ou de apoiar o “genocídio” pretensamente cometido pelos sérvios (como se somente os sérvios atacassem populações civis e como se a guerra não fosse o resultado de anos de atuação desintegradora, por parte de forças “neoliberais” estadunidenses e européias), mesmo que isso implicasse, da parte das forças da OTAN, apoiar grupos políticos sabidamente vinculados ao narcotráfico e ao banditismo, como por exemplo o UCK croata.

Esse o escopo para que “democratas” e neo-fascistas façam do “caso Battisti” uma questão de honra, isto é, a recusa de abandonar a política de exceção para julgar movimentos sociais e posições políticas que confrontem de modo antagonista a pretensa democracia de uma certa “esquerda” – transformada em office boy do capitalismo e em tarefeira dos interesses dos EUA na Europa – e a truculência boçal do atual governo neofascista italiano. Os “democratas” e os neofascistas se recusam a reabrir os processos judiciários excepcionais dos “anos de chumbo”, porque foram coniventes, inclusive com as injustiças que as sumariedades, nesses casos, propiciam. A ferocidade dos ataques ao povo e ao Estado brasileiros, por parte do governo neofasciata italiano, com a conivência dos “democratas”, demonstram a justeza do governo brasileiro em conceder asilo político a Battisti.

Em especial, a direita, que grita contra o “desrespeito” brasileiro às leis italianas, mas não diz nada sobre a negação de extradição para o Brasil do banqueiro ítalo-brasileiro Salvatore Cacciola, por parte das autoridades italianas, ladrão contumaz das finanças populares, condenado por peculato em nosso país; não se pronuncia sobre os terroristas italianos de extrema-direita que vivem no Brasil. Essa mesma direita faz “olhos de mercador” para a (justa) concessão de asilo político e humanitário dado pelo governo francês a Marina Petrella, em 2008, ex-militante das Brigadas Vermelhas, não somente porque Sarkozy é um sempre possível aliado da direita italiana, no contexto da UE, mas porque, em sua fúria racista, a direita italiana entende que Sarkozy (ironicamente, um filho da imigração!) é “menos desrespeitoso” com a Itália porque preside um grande país europeu. No caso dos “democratas”, esses chegaram até fazer um “protesto” contra o governo francês, mas tênue, com algumas vozes alçadas, em tom muito menor.

Como ítalo-brasileiro, napolitano, por parte de pai e ciociaro, por parte de mãe – genitores que desde pequeno me ensinaram o amor pela Itália –, condeno veementemente a posição do governo italiano. Reprovo e me envergonho da perseguição aos imigrantes, aos não-ocidentais, aos ciganos, aos muçulmanos, que em sua grande maioria, estão na Itália para trabalhar, progredir e viver em paz, como assim fizeram os italianos, quando “expulsos” de sua terra natal pela miséria e pelos opressores, e construíram no Brasil um novo lar. Também eles foram estigmatizados, como “ladrões”, “malfeitores”, “desordeiros” e “ignorantes”, por parte da elite e dos setores reacionários da sociedade brasileira. Muitos dos lideres operários italianos foram deportados do Brasil como elementos “anti-sociais”, e alguns como “terroristas” porque lutavam contra a exploração do trabalho, a mesma exploração que os impeliu a imigrar para uma nova terra.

Nunca é demais recordar que o atual ministro das Relações Exteriores da Itália, senhor Franco Frattini, foi censurado no Euro-Parlamento, em novembro de 2007, por haver declarado ser favorável à deportação sumária da União Européia de estrangeiros desempregados ou em situação irregular, atacando particularmente a população cigana-rom.

Repugno a hostilidade contra o povo brasileiro, que não vacilou em mandar à Itália 25.000 de seus soldados para combater o nazi-fascismo, que bravamente tombaram em Monte Castello, Fornovo e Montese, mortos pela dignidade humana, como está escrito na Pedra Branca em homenagem aos caídos, no outrora cemitério brasileiro de Pistoia, hoje Monumento aos soldados brasileiros.

Para alem dessa questão pontual do “caso Battisti”, a Itália deverá trilhar o caminho para reconciliar-se consigo mesma e com sua história, encontrando a verdade dos fatos ocorridos nos ainda obscuros “anos de chumbo”. A ferida aberta deve purgar para cicatrizar. Essa é a tarefa dos verdadeiros combatentes pela justiça social e pela democracia, na Itália e em todo mundo.

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